quarta-feira, 27 de novembro de 2019

"Mas Deus Me Fez Assim!"

John M. Frame

Geralmente os homossexuais têm afirmado que não podem deixar de ser homossexuais. A homossexualidade, eles argumentam, é inata: talvez geneticamente determinada, em todo caso, tão profundamente arraigada em seu próprio ser que seja, para eles, uma condição inevitável.


Portanto, eles concluem, a igreja e a sociedade devem aceitar a homossexualidade como natural e normal. Certamente, eles insistem, é injusto condenar as pessoas pelo que elas não podem deixar de fazer.


De fato, aqueles homossexuais que querem reconhecimento como cristãos interpretam a "inevitabilidade" de sua condição teologicamente: “Deus me fez assim.” Como os cristãos podem, então, condenar uma condição que o próprio Deus criou?


Essa questão surge em muitas áreas de discussão que vão além da homossexualidade.

O rápido progresso da ciência genética tem levantado discussões animadas sobre se alguns padrões de comportamento são inatos.

Há alguns anos, aprendeu-se que uma proporção anormalmente alta de meninos com um cromossomo duplo “y” se envolve em comportamentos antissociais ou criminais. Essa descoberta implica que a criminalidade, pelo menos em alguns casos, é uma condição inata e inevitável? O que então? Nós deveríamos abortar crianças que têm essa combinação genética? Deveríamos testar as crianças mais cedo com essa condição e fazer um esforço especial para orientar os meninos xyy em caminhos construtivos? Deveríamos procurar maneiras de mudar a composição genética de tais crianças?

Mais tarde veio a descoberta de que um determinado gene está associado com uma porcentagem relativamente alta de alcoólatras. E ainda mais recentemente, Simon LeVay, ativista gay e neurocientista, publicou um artigo na Science (253: 1034-1037) argumentando que existem diferenças mínimas, mas estatisticamente significativas, entre homens heterossexuais e homossexuais quanto ao tamanho do "INAH-3" região do hipotálamo anterior, parte do cérebro. Alguns tem argumentado que essa descoberta tende a estabelecer o que os ativistas gays têm dito há muito tempo, a saber, que a homossexualidade é uma condição inata e não uma “escolha”, que não pode ser ajudada e, portanto, deve ser aceita como normal.


Eu não sou competente para avaliar a pesquisa de LeVay. Eu penso que nós somos sábios em suspender o juízo até que o trabalho de LeVay seja corroborado por outros que são mais objetivos na questão. No entanto, nós devemos notar, como outros tem, que há um problema não respondido do tipo “ovo e galinha” aqui: Como nós sabemos que estas condições (ou talvez a largamente não explorada base física para isso) é a causa, e não o efeito, de um pensamento e comportamento homossexual?


E, é claro, também devemos lembrar que essas descobertas foram feitas através de estudos em cérebros de pessoas que eram exclusivamente homossexuais, em comparação com cérebros de pessoas que se presumia serem exclusivamente heterossexuais. 1 Mas há uma grande lacuna entre esses dois extremos. A população exclusivamente homossexual parece estar entre 1% e 3% da população (o número muito utilizado de Kinsey de 10% agora é amplamente desacreditado). Mas muito mais pessoas têm inclinações bissexuais, e outras ainda são, em grande parte, heterossexuais, mas dispostas a entrar em relacionamentos homossexuais sob certas circunstâncias (experimentação, prisão, etc.). Existe uma base genética para esses padrões de comportamento bastante complicados? Nem LeVay nem ninguém mais ofereceu dados sugerindo isso.


Mas vamos supor que exista uma base física inata para a homossexualidade, o alcoolismo e a criminalidade em geral. Suspeito que, à medida em que a ciência genética se desenvolve ao longo dos anos, haverá mais e mais correlações feitas entre genética e comportamento, e haverá progresso científico. Que conclusões éticas devemos tirar disso?


Em primeiro lugar, certamente não devemos tirar a conclusão que os ativistas gays pretendem, a saber, que qualquer condição "inata" deve, portanto, ser aceita como natural e normal. Condição inata não tem nada a ver com normalidade. Muitas doenças, por exemplo, são determinadas geneticamente. Mas não consideramos Tay-Sachs ou Anemia Falciforme como condições "normais" ou desejáveis, e muito menos possuir alguma virtude ética. Também não consideramos o alcoolismo ou o comportamento anti-social "xyy" normal e natural. Em vez disso, nos esforçamos para combatê-los. As descobertas genéticas, de fato, abrem mais armas possíveis para essa luta. Alguns tem sugerido, de fato, que a descoberta de um "gene gay" nos daria a oportunidade, através do aborto ou manipulação genética, de eliminar a sociedade homossexual (ou pelo menos um impulso à homossexualidade). É precisamente isso que os ativistas gays não querem ouvir. 


Além disso, devemos manter essas descobertas em perspectiva. Isto é, nem todo mundo que possui o gene xyy se torna um criminoso, e nem todo mundo com uma predisposição genética para alcoolismo se torna um alcoólatra. Da mesma forma, é pouco provável que um "gene gay", caso exista, realmente determine que certas pessoas sejam homossexuais. Embora estudos com gêmeos mostrem uma correlação entre genética e homossexualidade, metade de todos os irmãos gêmeos de homossexuais são heterossexuais. Os dados sugerem algo menos que um determinismo genético. Pelo contrário, eles sugerem que é possível alguém resistir aos padrões de comportamento aos quais ele é geneticamente predisposto. Os genes determinam a cor dos olhos, sexo, tipo sanguíneo e assim por diante; mas os padrões de comportamento, embora influenciados pela composição genética, não parecem ser controlados por ela. As típicas diferenças comportamentais entre homens e mulheres, por exemplo, têm uma base genética; mas (como as feministas são rápidas em apontar) a base genética não determina exaustivamente como nos comportaremos em todas as situações. As mulheres, às vezes, se comportam de maneiras mais típicas dos homens e vice-versa. Os genes podem impulsionar, mas não obrigar.


Certamente outros tipos de influências costumam ser mais convincentes do que a herança genética. Um editorial não assinado da National Review (09 de Agosto de 1993, pg. 17) pontua que "os efeitos da brutalização da infância pode restringir a liberdade da criança muito mais do que uma preferência fisiológica por doce; e muitos impulsos puramente biológicos perdem sua força antes da necessidade do fumante por cigarro.” Portanto, se desculpamos a homossexualidade com base na predisposição genética, devemos igualmente desculpar todos os atos resultantes da influência ambiental e de más escolhas no passado. Se uma compulsão tem uma base genética, isso é eticamente irrelevante. 


Em outros casos, não desculpamos atos cometidos com base em predisposições genéticas. Aquele que tem uma propensão genética ao alcoolismo não pode desculpar seu alcoolismo por essa base; nem um homem xyy pode desculpar sua criminalidade. Essas condições não forçam as pessoas a fazerem algo contrário aos seus desejos. Nesse sentido, elas não comprometem a liberdade moral. Elas criam desafios morais, pontuais para a tentação moral. Mas isso também deve ser visto em perspectiva: todos nós temos "pontos fracos" morais em áreas em que somos especialmente vulneráveis às tentações do diabo. Essas áreas de tentação possuem muitas fontes; hereditariedade está entre elas. Outras seriam ambientes, experiências e nossas próprias decisões passadas. Assim, algumas pessoas possuem problemas específicos com a tentação de abuso do álcool; outras, no entanto, devido ao seu engajamento inicial, gosto pessoal ou vínculos sociais, geralmente não são tentadas a cometer esse pecado em específico. Mas estas pessoas certamente terão outras áreas de tentação. Isso é verdade mesmo para aqueles que são mais maduros na fé cristã: essa maturidade abre as portas para a tentação do orgulho espiritual. Assim, a pessoa cujos desafios morais têm um componente genético envolvido, não está em uma situação totalmente única. Todos enfrentamos esses desafios; eles nunca estão inteiramente sob nosso controle. Para todos nós, este mundo é um lugar espiritualmente perigoso. Verdadeiramente, “o diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar" (1 Pedro 5:8). Mas, graças à graça de Deus, podemos “resisti-lhe firmes na fé, certos de que sofrimentos iguais aos vossos estão-se cumprindo na vossa irmandade espalhada pelo mundo” (verso 9). 


Uma base genética para a homossexualidade eliminaria o elemento de "escolha"? Certamente não. Uma pessoa com propensão genética ao alcoolismo ainda faz uma escolha quando decide tomar uma bebida, e depois outra e depois outra. O mesmo acontece com um homem xyy que decide dar um soco no nariz de alguém. Se assumirmos a existência de uma propensão genética à homossexualidade, certamente assumiríamos que tais pessoa enfrentam maior tentação nessa área do que em outras. Mas aqueles que sedem à tentação estão escolhendo assim proceder, como todos nós quando cedemos às nossas próprias tentações. Os homossexuais certamente escolhem não permanecer celibatários e optam por ter relações sexuais. Eles não são forçados a fazer isso por seus genes ou por qualquer coisa contrária aos seus próprios desejos.


É possível que um homossexual se arrependa de seu pecado e, pela graça de Deus, se torne heterossexual? Os ministérios cristãos que lidam com os homossexuais afirmam que isso é possível e que isso tem acontecido, embora admitam que este é um pecado particularmente difícil de lidar. (A orientação sexual é algo que penetra profundamente na personalidade humana, e temos um instinto de mantê-la relativamente privada. Esse instinto é bom, mas dificulta o aconselhamento nessa área). Ativistas gays afirmam que isso é impossível e contestam supostos testemunhos "ex-gays". De fato, algumas pessoas que professaram libertação da homossexualidade voltaram mais tarde a relacionamentos homossexuais. E muitos "ex-gays" admitiram abertamente que continuam experimentando atração homossexual, atração que agora a tomam como um desafio moral e espiritual. Defensores pró-homossexuais argumentam que essa tentação homossexual persistente prova que a homossexualidade é irreversível. 


Pela fé eu acredito que Deus pode libertar homossexuais, visto que as Escrituras ensinam que sua graça pode libertar seu povo de todo pecado. (Veja especialmente 1 Cor. 6: 9-11.) Eu não fiz pesquisas de primeira mão sobre os resultados de vários ministérios existentes que lidam com os homossexuais. Certamente não me surpreenderia saber que muitas pessoas que lutam, pela graça de Deus, para superarem sua homossexualidade, ainda experimentam tentações homossexuais. As pessoas viciadas em álcool geralmente enfrentam tentações contínuas nessa área, muito tempo depois de terem parado de beber excessivamente. Da mesma forma, aqueles que superaram os impulsos de certos temperamentos, de drogas ou promiscuidade heterossexual. A tentação recorrente é um problema para todos nós e será até a glória. Não se pode julgar os frutos dos ministérios cristãos por um critério perfeccionista, a saber, pela suposição de que a libertação do pecado deve remover toda tentação em relação a esse pecado nesta vida.


A conclusão é de que o elemento genético no pecado não o desculpa. Para ver isso, é importante colocar a questão em uma perspectiva ainda mais ampla. O cristianismo nos instiga repetidamente a ampliar nosso ângulo de visão, pois nos chama a ver tudo da perspectiva de um Deus transcendente e do ponto de vista da eternidade. Essa perspectiva nos ajuda a ver nossas provações como "leves e momentâneas" (2 Coríntios 4:17) e nossos pecados como maiores do que normalmente admitimos. Considerando uma perspectiva bíblica, o fato difícil é que, em certo sentido, todo pecado é herdado. De Adão vem nosso pecado e nossa miséria. Somos culpados da transgressão de Adão, e através de Adão herdamos naturezas pecaminosas. Se uma predisposição genética justifica a sodomia, então nossa herança de Adão desculpa todo pecado! Mas esse claramente não é o caso. É claro que a teologia reformada interpreta nosso relacionamento com Adão como representativo, e não apenas genético, e isso é importante. Mas Adão representa todos os que dele descendem "por geração natural"; portanto, também há um elemento genético inevitável no pecado humano.


Isto é Justo? Considere que Adão continha todas as potencialidades (genéticas!) de todos nós e vivia em um ambiente perfeito, com a exceção de uma fonte de tentação. Nenhum de nós poderia ou teria feito melhor. E, apesar do individualismo americano, a raça humana é uma em sentidos importantes e Deus tem razão em julgá-la como uma entidade única. O ponto principal, obviamente, é que somos suas criações. Isso significa que Ele é quem define o que é "justo" e tem o direito de fazer o que bem entender com o trabalho de suas mãos. Nesse contexto amplo, o argumento de que um pecado deve ser declarado normal com base em seu componente genético ou devido a algum outro tipo de "inevitabilidade" é totalmente em função de interesses próprios.



_________________________________________________________________________________

1 Não tenho certeza de que essa presunção tenha sido verificada adequadamente na experimentação.

Fonte: https://frame-poythress.org/but-god-made-me-this-way/

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Os dons espirituais da atualidade como análogos dos dons apostólicos: A afirmação da obra extraordinária do Espírito Santo dentro da teologia cessacionista – Parte III


Vern Sheridan Poythress

VIII. Comandos ou direções
Agora, e quanto às instâncias que envolvem comandos ou direções pessoais? R.C. Sproul relata um incidente quando pensamentos surgiram abruptamente em sua cabeça “vá pelo mundo e pregue o Evangelho a toda alma viva… E leve Vesta  [a então futura esposa de R.C. Sproul] com você” [1]. Mais controversos são os casos nos quais um ser-humano dá um comando para outro: Abe diz para Bill “O Senhor diz que você está para se tornar um missionário em Moçambique”.
Começar com o termo “O Senhor diz” a meu ver é inapropriado, confuso e perigoso. É pedir para ser entendido como que reivindicando a infalibilidade da revelação. Neste sentido, Abe deveria dizer “Eu sinto que Deus está tocando em meu coração no sentido de que você deveria ir e se tornar um missionário em Moçambique” [2]
Ainda sem o perigo do modo de introdução, um comando como esse parece para algumas pessoas uma ameaça à suficiência da revelação bíblica. O Salmo 119:1 diz “Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do Senhor!”. Para estar sem culpa, tudo que é necessário é “caminhar de acordo com a Lei de Deus”. Nenhum comando ou regras adicionais são necessárias. Para os que pensam assim, a “lei de Deus” dá instruções completas em justiça. Similarmente 2ª Tm 3:16-17 indica que as Escrituras são suficientes “para que o homem de Deus seja equipado para toda boa obra”. Qualquer ordenança que adicione algo à Bíblia, se reivindicar infalibilidade ou não, é ilícita (Dt 4:2).
Em adição, comandos como os de Abe, frequentemente criam problemas práticos excruciantes. Suponham que Abe diga para Bill ir para como missionário para Moçambique, mas Bill não tem intuitivamente qualquer impulso próprio para ir. Bill está preso. Se ele não vai, se sente culpado por desobedecer a palavra do Senhor. Se ele vai, se sente infeliz porque ele realmente não quer ir e teme que aquela não seja verdadeiramente a vontade de Deus.
Contudo, grupos carismáticos tem tido, às vezes, tristes experiências onde pessoas manipuladoras têm usado comandos como esses para forçar uma obediência escrava aos seus caprichos. Tal como vendedores insistentes, pessoas têm usado comandos semelhantes para atingir fins pessoais. Compreensivelmente alguns líderes proibiram essa forma de mensagem totalmente, pois “Não é disso que a profecia trata”, eles dizem.
Certamente é uma prática perigosa, bem como há perigo de infringir a suficiência das Escrituras, cabendo então a nós termos precaução e até certa desconfiança sobre conteúdos extrabíblicos. Por outro lado, aparentemente, comandos extrabíblicos em determinadas circunstâncias podem merecer uma inspeção mais minuciosa.  Em alguns casos não são realmente adições às Escrituras, mas sim aplicação das Escrituras. Eles caem na área que eu chamo de conteúdo aplicado.  Considere, por um momento, aquela ideia de R. C. Sproul “vá por todo o mundo e pregue o Evangelho à toda criatura viva”. A linguagem é similar a de Marcos 16:15.  Problemas de crítica textual com a parte final de Marcos não nos permite afirmar de modo absolutamente certo que Marcos 16:15 é parte dos textos autógrafos, mas a ideia geral é bíblica, como é mostrado também em Mt 28:19. Não foi feita alguma adição estranha ou uma exigência inédita, no entanto nós temos um comando bíblico aplicado a R. C. Sproul. Para termos certeza que essa aplicação está correta, nós temos que ter algumas informações sobre R.C. Sproul, tais como: Ele tem os dons e qualificações espirituais necessárias para se tornar um pregador da Palavra?  Dados alguns conteúdos circunstanciais sobre Sproul, a aplicação é boa.
Em geral, tais aplicações usam comandos bíblicos e informações sobre o mundo. Apenas com algum grau de conhecimento sobre o mundo nós podemos asseverar se aquela aplicação é ou não apropriada.
Às vezes erros humanos podem ser cometidos mesmo quando há disponível um comando bíblico e um conteúdo circunstancial válido. Considere Atos 21:4 “Eles pelo Espírito diziam a Paulo que não subisse a Jerusalém”. Este é um texto difícil. Mas talvez tenha acontecido como se segue. “Por meio do Espírito” os discípulos em Tiro obtiveram a informação sobre o que aconteceria a Paulo em Jerusalém (Observe Atos 20:23: senão o que o Espírito Santo me testifica, de cidade em cidade, dizendo que me esperam prisões e tribulações). Essa informação foi recebida por meio de processos não-discursivos. Os discípulos também estavam familiarizados com os mandamentos bíblicos concernentes à proteção da vida humana (Pv 22:3, etc). Quando eles reuniram as normas bíblicas com a informação sobre o mundo, eles inferiram que Paulo não deveria ir. Mas a inferência estava incorreta por causa do chamado especial de Paulo (Atos 20:22-24; 21:14).
Quando alguém dá um comando pouco usual atualmente, esses comandos podem ser uma combinação de normas bíblicas com conteúdo circunstancial. Por exemplo, o comando “pregue o evangelho” endereçado para R.C. Sproul combina a norma bíblica de Mateus 28:19 com conteúdo circunstancial sobre os dons de Sproul. Às vezes tanto a norma bíblica quanto o conteúdo circunstancial podem vir por meio de processos não-discursivos.  Então a pessoa que emite o comando é incapaz de definir exatamente de onde vem o comando. É simplesmente um comando com origem não-discursiva. Não é infalível, claro, mas ainda é em alguns casos um comando que traz uma aplicação válida de determinada norma bíblica.
Consequentemente há uma inegável possibilidade que comandos válidos possam vir por meios de processos não-discursivos. Mas, conforme já observado, cautela deve ser tomada na avaliação desse comando. O conhecimento de outros, tanto o conhecimento sobre a Bíblia e o conhecimento sobre a situação e pessoas envolvidas, devem ser usadas para julgar qual a resposta apropriada. Deve ser ressaltado que o Senhor deseja serviço de nossos corações (2ª Co 9:7), não obediência escrava de alguém que carrega um fardo opressivo (Mt 11:28-30; 1ª Jo 5:3). Na raiz, o ser de Deus é sempre limpo “Ame o Senhor seu Deus com todo seu coração e toda sua alma e com todo seu entendimento” esse é o maior e mais importante mandamento, e o segundo é algo como “ame seu próximo como a ti mesmo”. Toda a Lei e os Profetas se resumem nesses dois comandos normativos (Mt 22:37-39). O povo precisa aprender a devotar toda sua energia para obedecer a clara vontade do Senhor. E no processo o que é menos claro (por exemplo, ir à Moçambique), fará sentido depois.
Acolhendo os dons espirituais
Retornemos então ao ponto principal. Já foi dito que em nossos dias Deus pode trabalhar por meio de processos discursivos e não-discursivos. No tempo dos apóstolos ambos ocorreram de modo inspirado. Em nosso tempo, o cânon das Escrituras está completo e a inspiração cessou. Processos modernos são falíveis, mas eles são análogos aos processos que ocorreram entre os apóstolos. No entendimento moderno dos dons espirituais, estamos seguindo as pistas daquilo que ocorreu nos tempos apostólicos.
O quê, então, estamos fazendo sobre os dons espirituais da atualidade?  Os dons modernos incluem dons discursivos (ex: dom de ensino) e dons não-discursivos (ex: pessoas que podem dar uma palavra de modo espontâneo [Cl 4:6]). A possibilidade dos dois tipos de dons podem inferidos a partir de uma distribuição análoga dos dons nos tempos dos apóstolos. Ademais, Cristo e o Espírito Santo são a fonte de todos aqueles dons (Ef 4:7,11; cf 1ªCo 12:11). São eles, não nós, que decidem quem usa processos discursivos ou não-discursivos como obra do Espírito Santo.
Em resposta, nós devemos acolher os dons espirituais de todos os tipos, honrá-los e recebê-los (12:14-26). Nós temos especialmente que buscar o amor (1ª Co 13) e aqueles dons que servem para edificar a Igreja (1ª Co 14). Ao mesmo tempo, temos que discriminar cada qual (1ª Ts 5:21-22) e exercer o discernimento, porque manifestações modernas são sempre falíveis. Todas as coisas devem ser avaliadas à luz das Escrituras à qual nada pode ser acrescentada (Dt 4:2; Ap 22:18-19).
Há lições aqui tanto para carismáticos quanto para não-carismáticos. Alguns carismáticos precisam se tornar mais explícitos sobre a falibilidade no sentido de definir apropriadamente o caráter misto dos dons não-discursivos. Eles precisam aprender a avaliar os dons discursivos.  Contudo, indiretamente eles têm dito: “Eu não preciso de você” (1ª Co 12:21) para os dons discursivos porque, supostamente, estes dons são menos espirituais que os não-discursivos. [3]
Em outro sentido, alguns não-carismáticos precisam aprender o valor dos dons não-discursivos. No entanto eles estão prontos a dizer “não preciso de você”, porque em termos de fundamento, supõe-se, é que os dons não-discursivos cessaram com o término do Cânon das Escrituras.  No entanto, o que eles têm mostrado é apenas que os dons não-discursivos inspirados cessaram com o término do cânon.
Nós também precisamos nos tornar mais evidentes onde a analogia é quebrada, a saber, aquilo que diz respeito à crucial distinção entre conteúdo de ensino e conteúdo circunstancial. O conteúdo inspirado na Bíblia é, de acordo com minha definição, todo conteúdo de ensino. Em contraste, nossa moderna configuração lida com o conteúdo de ensino e o conteúdo circunstancial. Consequentemente, não há uma analogia apostólica para nosso moderno conteúdo circunstancial. Para ser claro, os apóstolos e todos mais na Bíblia tiveram que se confrontar com desafios para aplicar os princípios bíblicos gerais à circunstâncias particulares. Mas as aplicações que os apóstolos fizeram em suas próprias vidas foram inspiradas e assim compreende parte da divina norma bíblica. Informação apostolicamente autorizada sobre circunstâncias, no entanto, por mais trivial que possa parecer (2ª Tm 4:13), é divinamente autoritativa e permanentemente instrutiva para a Igreja. A esse respeito, isso pertence ao lado divino, enquanto nossa informação circunstancial moderna pertence ao lado criado sobre a qual a palavra divina é aplicada. A relação entre nosso conteúdo de ensino moderno e o moderno conteúdo circunstancial não é simétrico ou balanceado. No entanto, o conteúdo de ensino moderno é autoritativo  enquanto re-expressa as Escrituras. O conteúdo circunstancial moderno não é eclesiasticamente mais autoritativo, não importa o quão sincero possa ser.
O debate sobre a cessação da profecia
Agora vamos olhar por um momento para um debate emaranhado. Pessoas debatem se “Profecia” no NT e a Igreja Primitiva foi divinamente inspirada e infalível.  Possuía completa autoridade? Richard B. Gaffin Jr. diz que foram inspiradas [4]. Wayne A. Grudem faz um contraponto ao afirmar que não foram [5]. Muitas pessoas acreditam que do resultado desse debate é crucial para o futuro do movimento carismático. Mas atualmente o resultado dos debates faz pouca diferença prática hoje.
Suponha que Gaffin esteja certo. Então a profecia cessou com o término da era apostólica e do cânon das Escrituras. O fenômeno moderno é falível e consequentemente não é idêntico ao fenômeno da profecia do NT. Mas processos não-discursivos como ensino de conteúdo são análogos à profecia, assim como uma pregação moderna é análoga à pregação apostólica. Consequentemente os princípios gerais concernentes aos dons espirituais, como articulado em 1ª Co 12-14 e outros, ainda são aplicáveis. O que os carismáticos chamam de profecia não é realmente a profecia mencionada no NT. Invés disso, é uma analogia falível. É realmente um dom espiritual para falar falivelmente por meio de processos não-discursivos. Em contraste com a pregação que é um dom espiritual para falar falivelmente por meio de processos discursivos.
Processos não-discursivos com conteúdo circunstancial não são, em certo sentido, análogos à profecia bíblica inspirada. Mas podem funcionar positivamente no serviço do Espírito, apenas como conteúdo circunstancial por meio de processos discursivos.
Por outro lado, suponha que Grudem esteja certo. Então a profecia continua. Mas tal profecia é falível. Não é idêntica com a profecia inspirada do AT. É de fato um dom espiritual para falar falivelmente por meio de processos não-discursivos. Se o conteúdo é bíblico, sua autoridade deriva da Bíblia. Se o conteúdo é circunstancial, não é uma adição à Bíblia (não divinamente autoritativa). Consequentemente é apenas informação e não tem qualquer autoridade. Consequentemente, Grudem termina substancialmente com  a mesma conclusão prática de Gaffin.
Assim, não há nenhuma necessidade para Gaffin e Grudem discordarem sobre o fenômeno moderno. Eles discordam apenas sobre o rótulo que devem dar ao fenômeno (“não-profecia” versus “profecia”) e sobre se o fenômeno do NT é idêntico ou meramente análogo ao fenômeno moderno.
Tanto Gaffin e Grudem já têm conhecimento da falibilidade do fenômeno moderno. Gaffin precisa apenas dar um passo adiante para integrar o fenômeno moderno na teologia dos dons espirituais. Dado esse passo de integração teológica, nós encontraremos que há uma justificativa analógica para o uso desses dons na Igreja hoje.
Grudem, por outro lado, precisa apenas clarificar o status da profecia. Profecia, ele diz, é falível, mas ainda revelatória. Ainda deriva de Deus e ainda é necessária para o bem estar da Igreja. Gaffin e muitos outros encontram algum tipo de dificuldade com esse tipo de descrição. Como algo pode ser revelatório e não competir com a suficiência das Escrituras? Eu explico como, em parte distinguindo conteúdo de ensino de conteúdo circunstancial. Conteúdo de ensino não pode adicionar nada às Escrituras, mas apenas reproduzir aquilo que já está nas Escrituras. Conteúdo circunstancial tem ao mesmo tempo o status de uma chamada de longa distância, que não reivindica qualquer autoridade especial. Portanto é óbvio que nenhum tipo de conteúdo ameaça a suficiência das Escrituras.
Se carismáticos e não-carismáticos pudessem concordar nestes pontos, eu penso que o debate dos dons espirituais modernos estaria largamente ultrapassado.  Mas há ajustes práticos. Pessoas que valorizam processos não-discursivos têm tendência a migrar para círculos carismáticos, onde dons não-discursivos são priorizados. Pessoas que valorizam dons discursivos tem migrado para círculos não-carismáticos. Cada grupo tem tendência a priorizar pessoas do seu próprio tipo.  Nós todos precisamos aprender novamente de 1ª Co 12  a importância de todos os dons, incluindo aqueles que ainda temos que nos acostumar.
Nós não podemos ditar antecipadamente que os dons discursivos ou não-discursivos devem sempre ser dominantes, ou que devem ter características excepcionais em toda comunidade cristã. O Senhor dá “os dons para cada um conforme Ele determina”, não como nós determinamos (1ª Co 12:11). Por outro lado, nós podemos estar confiantes que o Senhor regerá e guiará sua Igreja por meio das Escrituras completas. Ele não adiciona nenhuma reivindicação divinamente autoritativa. Consequentemente a natural proeminência pertence ao conteúdo de ensino, cuja autoridade deriva das Escrituras (Ef 4:11)…
Notas:
[1] R. C. Sproul, “Striking a Chord in the Heart of the Believer,” Table Talk 14/11 (Novembro 1990), p. 13.
[2] cf. Grudem, Gifts, p. 260.
[3] Tais lições estão incluídas no teor do que é dito em Gifts. pp. 253-263.
[4] Assim, por exemplo, Gaffin cautelosamente abre uma porta para os modernos dons não-discursivos emPerspectives on the Pentecost, p. 120: “Muitas vezes, também, o que é visto como profecia é na verdade um espontâneo trabalho do Espírito na aplicação da Escritura, uma compreensão mais ou menos repentina producente acerca do que o ensino bíblico tem sobre uma determinada situação ou problema. Todos os cristãos precisam estar abertos a esses trabalhos mais espontâneos do Espírito “. Gaffin fala aqui daquilo que eu classifico como conteúdo de ensino obtido através de processos não-discursivos. Robertson permite fenômenos semelhantes em A Palavra Final, p. 84.
[5] Gaffin, Perspectives.
[6] Grudem, Gifts.
Título original: Modern Spiritual Gifts as Analogous to Apostolic Gifts: Affirming Extraordinary Works of the Spirit Within Cessationist Theology.
Referência:
http://frame-poythress.org/modern-spiritual-gifts-as-analogous-to-apostolic-gifts-affirming-extraordinary-works-of-the-spirit-within-cessationist-theology/
Tradução: Thiago Holanda (Versão em português disponibilizada em: http://teologiacarismatica.com.br/).

Os dons espirituais da atualidade como análogos aos dons apostólicos: a afirmação da obra extraordinária do Espírito Santo dentro da teologia cessacionista: Parte II


Vern Sheridan Poythress

VI. CONTEÚDO CIRCUNSTANCIAL RECEBIDO POR MEIO DE PROCESSOS NÃO-DISCURSIVOS
Há muito temos discutido o conteúdo do ensino. Vamos agora considerar o segundo tipo de conteúdo – a saber, o conteúdo circunstancial. Nesta categoria nós temos declarações como as que seguem. Numa igreja americana alguém diz: “eu sinto que nossa igreja irmã em Xangai está em luta espiritual e passando por ataques”. Certa vez, C.H. Spurgeon apontou na direção da galeria da igreja dele e disse “jovem rapaz, as luvas que você tem em seu bolso, você não pagou por elas” [1]. Em uma outra ocasião, Spurgeon disse “há um homem que é sapateiro e que mantém sua sapataria aberta aos domingos; ele a abriu no último Sabbath pela manhã; pagaram-lhe nove pences por um serviço [2] e lucrou quatro pences. Sua alma foi vendida a Satanás por quatro pences”. Uma mulher na Suíça teve uma visão de um auditório em Essex onde Os Guinness estava prestes a palestrar e onde uma garota estrangeira estava prestes a impedir o encontro [3]. Todos são casos de conteúdo circunstancia obtidos por meio de processos não-discursivos.
Indubitavelmente esse tipo de conteúdo causa maiores dificuldades. No entanto, elas são consideravelmente reduzidas se atentarmos ao fato de que a informação obtida não é muito diferente em seu conteúdo daquelas obtidas por meio de canais óbvios. Por exemplo, em princípio a igreja em Xangai podia estar habilitada para fazer chamadas de longa distância para irmãos e irmãs dos Estados Unidos. Spurgeon podia ter obtido a informação (mas não foi o que ocorreu) da pessoa que havia roubado o par de luvas ou daquele que abriu sua loja no domingo. Os Guinness poderia ter efetuado uma chamada de longa distância para aquela mulher da Suíça. O tipo de informação envolvida não é impressionante. O impressionante é que a informação veio por meio de processos não-discursivos. Não houve qualquer chamada de longa distância ou qualquer outra comunicação cientificamente analisável pela qual a informação chegou ao receptor. Tais informações como um processo espiritual operando no nível da crença ordinária, ou concebida no nível dos dons espirituais. Se o cânon está completo, não há caminho pelo qual essa informação pertença ao nível 1 ou nível 2. Ademais, não há nenhuma razão prática pela qual a informação precisa pertencer ao nível 1 ou nível 2. O ponto em especial é que o receptor tenha recebido a informação, não que a informação tenha um status especial. Consequentemente, eu arguiria que a informação deste tipo pertence à mesma ampla categoria daquela informação recebida por um telefonema de longa distância, pelo jornal novo ou pela observação direta. É simplesmente uma informação sobre o mundo, não mais, não menos. Em princípio, não é uma informação que desafie as Escrituras mais do que a informação sobre se escovei ou não meus dentes após o café da manhã [4].
Eu penso que pessoas que têm problemas com processos não-discursivos têm problemas com a obviedade. Nos casos envolvendo processos não-discursivos, não houve nenhuma ligação de longa-distância. Assim, de modo lógico, a pessoa em questão deve ter recebido a informação diretamente de Deus. Consequentemente a informação deve ter sido diretamente inspirada por Deus e deve carregar a completa autoridade divina. Esta última conclusão cria a dificuldade mais dolorosa porque se a conclusão é verdadeira, a informação recebida competiria com a autoridade da Bíblia. Cessacionistas sentem que devem rejeitar completamente esse tipo de processo para proteger a suficiência e exclusividade da autoridade bíblica; Os não-cessacionistas, em contraste, sentem que devem se submeter a tais informações de modo acrítico, contrariando o caráter falível das fontes modernas.
Ambos lados precisam se acalmar. O erro crucial está em confundir o envolvimento de Deus com a falta de envolvimento da criatura humana e pecado humano, e, além disso, confundir o envolvimento de Deus com a plena autoridade divina do resultado. Deus, em certo sentido, está diretamente envolvido no crescimento da grama e do vento que sopra: “Fazes crescer erva para os animais” (Sl 104:14), no entanto o crescimento da erva não é inspirado. Por conseguinte, ainda que as pessoas não estejam conscientes das fontes dos seus pensamentos, suas palavras ou visões, as fontes estão ali em consequência de aspectos de suas personalidades. Lideranças nos círculos carismáticos são bem cônscios de que muitas pessoas podem falar em línguas ou entregar profecias na carne, ou seja, eles sabem que mesmo os processos não-discursivos são psicologicamente motivados. [5]
Sonhos são um bom exemplo.  A maioria dos ocidentais enxergam hoje a maioria dos sonhos basicamente como um produto do inconsciente ou de uma imaginação descontrolada. Presumivelmente houve muitos sonhos mundanos, ordinários nos tempos do Novo Testamento tal como hoje. Contudo alguns sonhos foram revelatórios (Mt 1:20-24). Atos 10.10 sugere que Deus pode se utilizar de uma experiência humana normal, tal como a fome funcionando como um meio pelo qual ele traz um sonho ou visão apropriados.
Analogicamente, nos tempos modernos, nós podemos postular que um sonho pode ser simultaneamente um produto de certas predisposições psicológicas pessoais e um meio usado por Deus para trazer uma atenção pessoal sobre um tipo de conteúdo circunstancial.  Por exemplo, suponha que apenas antes de ir para a cama, Sally e seu marido conversem sobre sua tia Emma que está dirigindo a uma considerável distância para um encontro especial naquela noite. Na alta madrugada então, Sally tem um sonho no qual a tia Emma morre repentinamente em um acidente de carro. Sally então acorda e decide orar pela tia e por aqueles que são próximos. Depois, volta a dormir. No dia seguinte recebe a notícia de que Emma se envolveu em um acidente na mesma noite em que Sally orou. O carro ficou totalmente destruído, mas felizmente tia Emma não ficou ferida. O sonho não é infalível ou não adiciona conteúdo à Bíblia. No entanto, foi uma experiência psicológica falível que Deus usou para trazer Sally à oração em um momento que era crucial.
O crucial exemplo de Lucas e do livro de Apocalipse retorna para nos instruir. Não há intrinsecamente uma espiritualidade superior que pertença aos processos discursivos (Lucas) ou processos não discursivos (Apocalipse). Quando o Espírito Santo produziu o cânon, ambos os processos foram inspirados. No entanto, em outras situações, ambos os processos foram não-inspirados. Eles podem ter sido também influenciados por demônios (2ª Tm 2.24-26; Lc 8.32; At 16.17-18). Ambos podem ser falíveis e ter um caráter confuso, de acordo com a falibilidade geral do ser humano. Uma vez que a inspiração cessou com o encerramento do cânon, fontes modernas são sempre falíveis.
Suponha então aceitarmos que os processos não-discursivos são todos falíveis. Eles não são em princípio uma ameaça à autoridade única da Bíblia, no entanto algumas pessoas ainda podem ter problemas em entender sobre como lidar com eles. Como então validar o conteúdo? Se nós não damos qualquer credencial aos processos não-discursivos, na prática não o estaríamos recebendo de modo não-crítico porque eles não podem ser diretamente checados pelas Escrituras?
Nós temos visto que quando o conteúdo é conteúdo de ensino ou doutrinariamente orientado, os ouvintes podem verificar o conteúdo em comparação com as Escrituras. Mas como um conteúdo circunstancial pode ser verificado? Suponha que alguém reivindique por meio de processos não-discursivos que certo homem não pagou por suas luvas. Devemos crer ou não na reivindicação?
Situações como essas não são tão difíceis como podemos supor. Muitas vezes não importa aquilo em que acreditamos. Nós somos livres para permanecer duvidando, e somos bastante aconselhados a permanecer em dúvida em virtude da falibilidade de todo o processo não-discursivo moderno. Nos casos da vida de Spurgeon, a congregação recebeu uma ilustração de uma lição geral sobre suas necessidades e pecados particulares, ou seja, uma ilustração dirigida por Deus. Se Spurgeon está certo e há um rapaz que roubou as luvas, o rapaz sabe disso e recebe a mensagem de modo muito particular. Mas se Spurgeon está errado (e de fato pode estar em decorrência de sua falibilidade), então ninguém recebe a mensagem de modo particular, mas permanece uma lição geral para toda a congregação. Assim, nós podemos orar por uma situação sem saber com certeza se ela é tal como pensamos ser; podemos orar por um jovem rapaz sabendo que Deus sabe qual a real situação, e, podemos orar por igrejas irmãs em Xangai.
Claro que o perigo de abuso nunca está distante. Spurgeon falou para uma grande congregação, então seria presumivelmente impossível para as pessoas saberem exatamente quem Spurgeon tinha em mente. Ele podia até não saber quem era o indivíduo. Mas se o orador estivesse reivindicando que uma pessoa em específico pecou, o resultado poderia ser uma calúnia e isso é claramente antibíblico (Pv 10:18; Cl 3:8; 1ª Pe 2:1, etc). O orador então necessitaria ser repreendido.
Algumas pessoas talvez sintam certo desconforto sobre essa incerteza. Talvez elas tenham as razões que seguem. Quando nós recebemos uma chamada de longa distância de Xangai, nós sabemos o que está acontecendo lá. Mas quando nós sabemos por processos não-discursivos, não podemos ter certeza de que aquilo está realmente acontecendo. Como podemos responder a isso?
Na atualidade nós estamos acostumados em muitos tipos de situações a responder situações duvidosas. Além do mais, uma chamada de longa distância não é infalível.  Pode haver estática na linha.  A pessoa do outro lado da linha pode estar confusa acerca da situação que está acontecendo em Xangai ou pode estar mentindo sobre a situação; talvez esteja insano; ou talvez a voz que estamos ouvindo seja uma voz digitalmente alterada. Apesar destes problemas de falibilidade, é possível responder propriamente a uma chamada de longa distância.
Considere por um outro ângulo. Se a pessoa do outro lado de uma chamada telefônica tem mostrado ser duvidosa no passado, nós desconfiamos daquilo que ela diz em certo nível. De igual modo, se o processo não-discursivo de alguém não tem sido confiável, nós desconfiamos do que ele diz na proporção da sua confiabilidade. Se nós não temos nenhuma experiência com os processos não-discursivos dessa pessoa, nós desconfiamos mais ou menos na mesma proporção de qualquer estranho aparentemente bem-intencionado. Muito dessa prática de estimativa é muito comum nas relações humanas. Nós não estamos tratando com algo que não tenha algum precedente na experiência humana.
VII. PREDIÇÕES
Há ainda alguns tipos de conteúdo circunstancial que precisa de atenção especial. Um destes é o da área de predição. O que fazer quando alguém prediz o tempo em que Jesus voltará? Então seguramente nós podemos ignorar a predição porque contradiz as Escrituras (Mc 13.32-37; At 1.7). Nós devemos admoestar a pessoa que faz a previsão, usando nossas bases de advertências bíblicas contra a definição de datas para o retorno de Cristo.
Peguemos agora um outro exemplo. E se alguém disser que a Califórnia será submersa no mar em uma data tal? Se vivemos na Califórnia, deveríamos preparar nossas malas e ir embora? A primeira regra em tais situações deve ser, como sempre, lembrar que toda predição humana é falível. O que devemos fazer com a predição de possibilidades ou previsões econômicas? Nós devemos prestar alguma atenção nelas, mas nós sabemos que elas frequentemente erram ou erram em parte e acertam em parte.
Algumas pessoas talvez objetem que as predições e predições econômicas não são um paralelo real porque eles são discursivos ao invés de não-discursivos. Certamente as pessoas que fazem previsões o fazem por inferência, mas as pessoas que julgam a credibilidade da predição quase nunca conhecem os detalhes da meteorologia moderna ou de teorias econômicas, nem conhecem os detalhes dos dados sobre os quais as teorias operam a fim de produzir uma previsão específica. Na prática atual, nós julgamos a credibilidade por meios humanos comuns. Aquele tipo de previsão se provou confiável no passado? A pessoa tem se mostrado uma pessoa confiável nessa área? Essa previsão é o tipo de coisa provável que Deus faria?
Nossa conclusão geral permanece a mesma. Indubitavelmente o Espírito Santo pode trabalhar por meio de processos não-discursivos para produzir predições humanas. Ele também pode trabalhar por meio de processos discursivos para produzir predições humanas. Um não é intrinsecamente mais espiritual que o outro e nenhum é intrinsecamente mais falível que o outro. Nenhum tipo de predição é uma palavra divina extra canônica que demande uma crença submissa, mas é simplesmente uma informação putativa sobre circunstâncias futuras, para ser avaliada como nós avaliaríamos qualquer outra predição.
Uma vez que entendemos que predições baseadas em processos não-discursivos não são uma categoria especial divina e são tão falíveis como as predições baseadas em processos discursivos, nós estamos prontos para a prática da sanidade. Assim, não podemos rejeitar totalmente nem aceitar de forma crédula essas predições.
Notas:
[1]  E. W. Bacon , Spurgeon: Heir of the Puritans. Grand Rapids: Eerdmans, 1968, p. 156.
[2]  Ibid
[3]  O. Guinness, The Dust of Death. Downers Grove: InterVarsity, 1973, p. 299.
[4] Juntamente com muitos outros, Robertson está devidamente muito preocupado com quaisquer palavrasextra afirmando ser “uma palavra vinda do Senhor”, ou afirmando especificar “sua vontade para a vida deles” (Final Word 88–95, esp. p. 89). Ele realça quão instáveis, confusas, opressoras e circunstanciais podem se tornar tais reivindicações. Mas a minha distinção entre conteúdo de ensino e conteúdo circunstancial aborda o problema. Conteúdo de ensino ou reitera as Escrituras ou é inválido) (assim não adiciona à Escritura). Conteúdo circunstancial propriamente compreendido, não é de todo “uma palavra vinda do Senhor”, no sentido de ser uma instrução sobre sua vontade, mas é simplesmente informação circunstancial. Se eu anuncio que eu escovei meus dentes não estou assim proclamando uma “palavra vinda do Senhor” expressando sua vontade (preceptiva).
[5] Veja, por exemplo, C. Brumback, What Meaneth This? (Springfield: Gospel Publishing House, 1947) 259; K. McDonnell, Charismatic Renewal and the Churches. New York: Seabury, 1976, pp. 145–146.
Título original: Modern Spiritual Gifts as Analogous to Apostolic Gifts: Affirming Extraordinary Works of the Spirit Within Cessationist Theology.
Referência:
http://frame-poythress.org/modern-spiritual-gifts-as-analogous-to-apostolic-gifts-affirming-extraordinary-works-of-the-spirit-within-cessationist-theology/
Tradução: Renan Moreira (Versão em português disponibilizada em: http://teologiacarismatica.com.br/).