John M. Frame |
PRESSUPOSIÇÕES
Nosso versículo tema, 1Pedro 3.15, começa dizendo: "...santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração". O apologeta tem de ser crente comprometido com o senhorio de Cristo (cf. Rm 10.9; 1Co 12.3; Fp 2.11). [1]
Alguns teólogos apresentam a apologética quase como se fosse uma exceção desse compromisso. Dizem-nos que, quando argumentamos com descrentes, deveremos não argumentar com base em critérios ou padrões derivados da Bíblia. Argumentar dessa maneira, eles dizem, seria tendencioso. Deveremos, antes, apresentar ao incrédulo um argumento sem preconceito, um que não contenha suposições religiosas contra ou a favor, um que seja neutro. Segundo essa visão, deveremos usar critérios e padrões que o próprio descrente possa aceitar. Assim, a lógica, fatos, experiência, razão e coisas como tais se tornariam fontes da verdade. A revelação divina, especialmente a Escritura, fica, assim, totalmente excluída. [2]
Tal argumento poderá parecer simples bom senso comum: uma vez que Deus e Escritura são precisamente as matérias em questão, obviamente não deveríamos fazer suposições sobre elas mesmas em nosso argumento. Isso seria usar um raciocínio circular. Também poria um fim ao evangelismo, pois, se exigirmos que o descrente assuma a existência de Deus e a autoridade da Escritura a fim de entrar no debate, certamente ele não consentirá. A comunicação entre crentes e incrédulos seria impossível. Portanto, deveríamos evitar a colocação de quaisquer requisitos desse tipo, e prosseguir, argumentando em bases de completa neutralidade. Poderíamos, até, jactar-nos diante do descrente de que nosso argumento somente pressupõe os critérios que ele também aceita (lógica, fato, consistência ou o que seja).
Esse tipo de apologética é, algumas vezes, chamado de método clássico ou tradicional, [3] dado que reivindica que muitos o defenderam por intermédio da história da igreja, particularmente os apologetas do século 2º (Justino, Mártir, Atenágoras, Teófilo e Aristides), o grande pensador do século 13, Tomás de Aquino, e muitos dos seus seguidores até o presente, como Joseph Butler (1752) e seus seguidores, e, de fato, a grande maioria dos apologetas contemporâneos. [4]
Ao dizer que os apologetas tradicionais defendem a "neutralidade", não estou argumentando que, quando fazem apologética, eles tentem colocar á parte o seu compromisso cristão. De fato, muitos deles creem que seu tipo de apologética é sustentado pela Escritura e que, portanto, santifica "a Cristo, como Senhor" no "coração". Eles, no entanto, dizem aos incrédulos que pensem com neutralidade durante o encontro apologético, procurando, eles mesmos, desenvolver um argumento neutro, um que não tenha pressuposições distintamente bíblicas.
Coloco-me distante de, até mesmo, desejar declarar que tal tradição seja sem valor. Mas precisamente sobre o ponto em questão, a questão da neutralidade, eu não creio que ela seja bíblica. O raciocínio de Pedro, em nosso versículo tema, é bem diferente. Para Pedro, a apologética não é uma exceção do abrangente compromisso com o senhorio de Cristo. Ao contrário, a situação apologética é uma em que temos de santificar "a Cristo, como Senhor" no "coração" para falar e viver de maneira que exalte seu senhorio e encoraje outros a fazer o mesmo. Em um contexto mais amplo, Pedro está dizendo a seus leitores que façam aquilo que é certo, a despeito da oposição dos incrédulos (vs. 13-14). Diz que não temamos. Certamente seu ponto de vista não era que, em apologética, deveríamos colocar algo menos do que a verdade em função do medo de a própria verdade ser rejeitada.
Pedro, ao contrário, diz que o senhorio de Jesus (e, por conseguinte, da verdade de sua Palavra, pois como poderíamos chamá-lo "Senhor" e não fazer o que ele diz [Lc 6.46]?) é nossa ultimada pressuposição [5]. Uma proposição última é um compromisso de coração, uma confiança final. Confiamos em Jesus Cristo como sendo questão de vida eterna ou de morte. Em sua sabedoria acima de qualquer sabedoria. Em suas promessas acima de quaisquer outras. Ele nos chama para lhe dedicar toda a nossa lealdade e não permitir que outra lealdade rivalize com a que lhe é devida (Dt 6.4ss,; Mt 6.24; 12.30; Jo 14.6; At 4.12). Obedecemos a sua lei, mesmo quando ela conflita com leis menores (At 5.29). Uma vez que cremos nele com maior certeza que cremos em qualquer outra coisa, ele (e, portanto, sua Palavra) é o próprio critério, o padrão final de verdade. Que maior padrão possivelmente haveria? Que padrão seria mais autoritário? Que padrão seria mais claramente conhecido ( ver Rm 1.19-21)? Que autoridade, em última instância, validaria todas as outras autoridades?
O senhorio de Cristo não é somente último e inquestionável, não apenas acima e além de todas as autoridades, mas também cobre todas as áreas da vida humana. Em 1Coríntios 10.31, lemos: "Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus" (cf. Rm 14.23; 2Co 10.5; Cl 3.17, 23; 2Tm 3.16-17). A demanda de nosso Senhor sobre nós é toda abrangente. Temos de buscar agradá-lo em tudo o que fazemos. Nenhuma área da vida humana é neutra. [6]
Certamente, esse princípio inclui a área do pensamento e do conhecimento. O temor do Senhor é o princípio do saber, diz o autor de Provérbios (1.7; cf. Sl 111.10; Pv 9.10). Aqueles que não são trazidos ao temor do Senhor sequer podem ver o reino de Deus (Jo 3.3).
O ponto não é se os descrentes são simplesmente ignorantes da verdade. Antes, Deus se revelou a cada pessoa com evidente claridade, tanto na criação (Sl 19; Rm 1.18-21) quanto na natureza do homem (Gn 1.26ss.). Em certo sentido, o incrédulo conhece Deus (Rm 1.21). Em algum nível de sua consciência ou inconsciência permanece tal conhecimento. [7] A despeito desse conhecimento, o incrédulo intencionalmente distorce a verdade, substituindo-a pela mentira (Rm 1.18-32; 1Co 1.18–2.16 [observe especialmente 2.14]; 2Co 4.4). Portanto, o descrente é “enganado” (Tt 3.3). Ele conhece a Deus (Rm 1.21) e, ao mesmo tempo, não conhece a Deus (1Co 1.21; 2.14).[8] Evidentemente, esses fatos suportam o ponto de que a revelação de Deus tem de governar a nossa aproximação apologética. O descrente não pode (e não quer) chegar à fé à parte do evangelho da salvação revelado na Bíblia. Nós também não saberíamos a respeito da condição do incrédulo à parte da Escritura. E não poderemos alcançá-lo apologeticamente a menos que estejamos dispostos a ouvir os princípios apologéticos da própria Escritura.
Isso significa não apenas que o apologeta tem de santificar a “Cristo como Senhor” em seu coração, mas também que seu argumento tem de pressupor esse senhorio. Nosso argumento tem de ser uma exposição do conhecimento e da sabedoria baseados no “temor do Senhor”, não uma exibição de estultícias da incredulidade. Portanto, o argumento apologético, como em tudo o que fazemos, tem de pressupor a verdade da Palavra de Deus. Aceitamos a autoridade de Deus ou a rejeitamos, e não aceitá-la é pecado. E isso, não importando se conversamos com não cristãos. Nesse caso – especialmente nesse caso (pois estaríamos dando testemunho) – teríamos de ser fiéis à revelação do Senhor.
Dizer ao incrédulo que podemos arrazoar com ele em uma base neutra, por mais que possa atrair sua atenção, é uma afirmação mentirosa. De fato, é uma mentira do mais sério tipo, pois falsifica o cerne do evangelho – a confissão de que Jesus é o Senhor. Por essa razão, não há neutralidade. Nosso testemunho será a sabedoria de Deus ou a estultícia do mundo. Nada poderá haver no meio delas. E mais: mesmo se a neutralidade fosse possível, seria um caminho que nos é proibido.
Argumento Circular
Nosso versículo tema, 1Pedro 3.15, começa dizendo: "...santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração". O apologeta tem de ser crente comprometido com o senhorio de Cristo (cf. Rm 10.9; 1Co 12.3; Fp 2.11). [1]
Alguns teólogos apresentam a apologética quase como se fosse uma exceção desse compromisso. Dizem-nos que, quando argumentamos com descrentes, deveremos não argumentar com base em critérios ou padrões derivados da Bíblia. Argumentar dessa maneira, eles dizem, seria tendencioso. Deveremos, antes, apresentar ao incrédulo um argumento sem preconceito, um que não contenha suposições religiosas contra ou a favor, um que seja neutro. Segundo essa visão, deveremos usar critérios e padrões que o próprio descrente possa aceitar. Assim, a lógica, fatos, experiência, razão e coisas como tais se tornariam fontes da verdade. A revelação divina, especialmente a Escritura, fica, assim, totalmente excluída. [2]
Tal argumento poderá parecer simples bom senso comum: uma vez que Deus e Escritura são precisamente as matérias em questão, obviamente não deveríamos fazer suposições sobre elas mesmas em nosso argumento. Isso seria usar um raciocínio circular. Também poria um fim ao evangelismo, pois, se exigirmos que o descrente assuma a existência de Deus e a autoridade da Escritura a fim de entrar no debate, certamente ele não consentirá. A comunicação entre crentes e incrédulos seria impossível. Portanto, deveríamos evitar a colocação de quaisquer requisitos desse tipo, e prosseguir, argumentando em bases de completa neutralidade. Poderíamos, até, jactar-nos diante do descrente de que nosso argumento somente pressupõe os critérios que ele também aceita (lógica, fato, consistência ou o que seja).
Esse tipo de apologética é, algumas vezes, chamado de método clássico ou tradicional, [3] dado que reivindica que muitos o defenderam por intermédio da história da igreja, particularmente os apologetas do século 2º (Justino, Mártir, Atenágoras, Teófilo e Aristides), o grande pensador do século 13, Tomás de Aquino, e muitos dos seus seguidores até o presente, como Joseph Butler (1752) e seus seguidores, e, de fato, a grande maioria dos apologetas contemporâneos. [4]
Ao dizer que os apologetas tradicionais defendem a "neutralidade", não estou argumentando que, quando fazem apologética, eles tentem colocar á parte o seu compromisso cristão. De fato, muitos deles creem que seu tipo de apologética é sustentado pela Escritura e que, portanto, santifica "a Cristo, como Senhor" no "coração". Eles, no entanto, dizem aos incrédulos que pensem com neutralidade durante o encontro apologético, procurando, eles mesmos, desenvolver um argumento neutro, um que não tenha pressuposições distintamente bíblicas.
Coloco-me distante de, até mesmo, desejar declarar que tal tradição seja sem valor. Mas precisamente sobre o ponto em questão, a questão da neutralidade, eu não creio que ela seja bíblica. O raciocínio de Pedro, em nosso versículo tema, é bem diferente. Para Pedro, a apologética não é uma exceção do abrangente compromisso com o senhorio de Cristo. Ao contrário, a situação apologética é uma em que temos de santificar "a Cristo, como Senhor" no "coração" para falar e viver de maneira que exalte seu senhorio e encoraje outros a fazer o mesmo. Em um contexto mais amplo, Pedro está dizendo a seus leitores que façam aquilo que é certo, a despeito da oposição dos incrédulos (vs. 13-14). Diz que não temamos. Certamente seu ponto de vista não era que, em apologética, deveríamos colocar algo menos do que a verdade em função do medo de a própria verdade ser rejeitada.
Pedro, ao contrário, diz que o senhorio de Jesus (e, por conseguinte, da verdade de sua Palavra, pois como poderíamos chamá-lo "Senhor" e não fazer o que ele diz [Lc 6.46]?) é nossa ultimada pressuposição [5]. Uma proposição última é um compromisso de coração, uma confiança final. Confiamos em Jesus Cristo como sendo questão de vida eterna ou de morte. Em sua sabedoria acima de qualquer sabedoria. Em suas promessas acima de quaisquer outras. Ele nos chama para lhe dedicar toda a nossa lealdade e não permitir que outra lealdade rivalize com a que lhe é devida (Dt 6.4ss,; Mt 6.24; 12.30; Jo 14.6; At 4.12). Obedecemos a sua lei, mesmo quando ela conflita com leis menores (At 5.29). Uma vez que cremos nele com maior certeza que cremos em qualquer outra coisa, ele (e, portanto, sua Palavra) é o próprio critério, o padrão final de verdade. Que maior padrão possivelmente haveria? Que padrão seria mais autoritário? Que padrão seria mais claramente conhecido ( ver Rm 1.19-21)? Que autoridade, em última instância, validaria todas as outras autoridades?
O senhorio de Cristo não é somente último e inquestionável, não apenas acima e além de todas as autoridades, mas também cobre todas as áreas da vida humana. Em 1Coríntios 10.31, lemos: "Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus" (cf. Rm 14.23; 2Co 10.5; Cl 3.17, 23; 2Tm 3.16-17). A demanda de nosso Senhor sobre nós é toda abrangente. Temos de buscar agradá-lo em tudo o que fazemos. Nenhuma área da vida humana é neutra. [6]
Certamente, esse princípio inclui a área do pensamento e do conhecimento. O temor do Senhor é o princípio do saber, diz o autor de Provérbios (1.7; cf. Sl 111.10; Pv 9.10). Aqueles que não são trazidos ao temor do Senhor sequer podem ver o reino de Deus (Jo 3.3).
O ponto não é se os descrentes são simplesmente ignorantes da verdade. Antes, Deus se revelou a cada pessoa com evidente claridade, tanto na criação (Sl 19; Rm 1.18-21) quanto na natureza do homem (Gn 1.26ss.). Em certo sentido, o incrédulo conhece Deus (Rm 1.21). Em algum nível de sua consciência ou inconsciência permanece tal conhecimento. [7] A despeito desse conhecimento, o incrédulo intencionalmente distorce a verdade, substituindo-a pela mentira (Rm 1.18-32; 1Co 1.18–2.16 [observe especialmente 2.14]; 2Co 4.4). Portanto, o descrente é “enganado” (Tt 3.3). Ele conhece a Deus (Rm 1.21) e, ao mesmo tempo, não conhece a Deus (1Co 1.21; 2.14).[8] Evidentemente, esses fatos suportam o ponto de que a revelação de Deus tem de governar a nossa aproximação apologética. O descrente não pode (e não quer) chegar à fé à parte do evangelho da salvação revelado na Bíblia. Nós também não saberíamos a respeito da condição do incrédulo à parte da Escritura. E não poderemos alcançá-lo apologeticamente a menos que estejamos dispostos a ouvir os princípios apologéticos da própria Escritura.
Isso significa não apenas que o apologeta tem de santificar a “Cristo como Senhor” em seu coração, mas também que seu argumento tem de pressupor esse senhorio. Nosso argumento tem de ser uma exposição do conhecimento e da sabedoria baseados no “temor do Senhor”, não uma exibição de estultícias da incredulidade. Portanto, o argumento apologético, como em tudo o que fazemos, tem de pressupor a verdade da Palavra de Deus. Aceitamos a autoridade de Deus ou a rejeitamos, e não aceitá-la é pecado. E isso, não importando se conversamos com não cristãos. Nesse caso – especialmente nesse caso (pois estaríamos dando testemunho) – teríamos de ser fiéis à revelação do Senhor.
Dizer ao incrédulo que podemos arrazoar com ele em uma base neutra, por mais que possa atrair sua atenção, é uma afirmação mentirosa. De fato, é uma mentira do mais sério tipo, pois falsifica o cerne do evangelho – a confissão de que Jesus é o Senhor. Por essa razão, não há neutralidade. Nosso testemunho será a sabedoria de Deus ou a estultícia do mundo. Nada poderá haver no meio delas. E mais: mesmo se a neutralidade fosse possível, seria um caminho que nos é proibido.
Argumento Circular
Seria o caso de abraçarmos o argumento circular? Somente em um sentido.
Nós não somos chamados a usar um argumento como: “A Bíblia é verdadeira;
portanto a Bíblia é verdadeira”. É bem legítimo, como observaremos, argumentar
na base de evidência como o testemunho de quinhentas pessoas acerca da
ressurreição de Cristo (1Co 15.6). Os relatos de testemunhas oculares poderão
ser usados argumentativamente como segue: “Se as aparições de Jesus após a
ressurreição foram bem atestadas, então a ressurreição é um fato. Suas
aparições foram bem atestadas, portanto, a ressurreição é um fato”. Esse não é
um argumento circular em qualquer definição razoável de circularidade. No
entanto, torna-se evidente certa circularidade quando alguém pergunta: “Qual é
seu critério último para uma boa atestação?” Ou: “Que visão abrangente do
conhecimento humano permite que você raciocine a partir de testemunhas oculares
de um fato miraculoso?” A filosofia empirista de David Hume, para usar um único
exemplo, não permite esse tipo de argumento. O fato é que o cristão, aqui,
estará pressupondo uma epistemologia cristã – uma visão de conhecimento,
testemunho, atestado, aparição, e fato que está sujeita á Escritura. Em outras
palavras, estará usando normas escriturais para provar conclusões escriturais. [9]
Será que tal procedimento mereceria ser condenado como sendo “circular”? Todo mundo raciocina da mesma maneira. Cada filosofia usa os próprios padrões a fim de provar suas conclusões; de outro modo, seria inconsistente. Aqueles que creem que a razão humana é a autoridade final (racionalistas) terão de pressupor a autoridade da razão para elaborar seus argumentos em favor do racionalismo. Os que acreditam na ultimação da experiência sensorial terão de pressupor isso ao argumentar em favor de sua filosofia (empirismo). E os céticos terão de ser céticos em relação ao próprio ceticismo (um fato que, é claro, é o calcanhar-de-aquiles do ceticismo). O ponto é que, quando alguém argumenta quanto á necessidade de um critério último – Escritura, Alcorão, razão humana, sensação ou o que quer que seja – terá de usar um critério compatível com a sua conclusão. Se isso significar circularidade, então todo mundo será culpado de circularidade. [10]
Isso eliminaria a possibilidade de comunicação entre o crente e o incrédulo? Parece que sim. O cristão argumenta baseado em critérios bíblicos, que a ressurreição é um fato. O não cristão replica que não pode aceitar tais critérios e que não aceitará a ressurreição a menos que seja provada, digamos, pelos padrões do empirismo de Hume. Nós respondemos que não podemos aceitar as pressuposições de Hume. O descrente diz que não pode aceitar as nossas. Será que isso terminaria a conversa?
Certamente não, por diversas razões.
Em primeiro lugar, repito, a Escritura nos diz que Deus se revelou claramente ao incrédulo, de maneira que o descrente conhece a Deus (Rm 1.21). Embora ele reprima tal conhecimento (vs. 21 ss.), em algum nível de sua consciência há uma memória dessa revelação. É contra essa memória que ele peca e por causa dela é que ele é responsabilizado por seus pecados. Nesse nível, ele sabe que o empirismo está errado e que os padrões da Escritura estão certos. Nós dirigimos nosso testemunho apologético não á sua epistemologia empirista ou outra, mas á sua memória da revelação de Deus á epistemologia implícita nessa revelação. Para alcançar comunicação significante, não só podemos, mas devemos usar critérios cristãos em vez de os critérios da epistemologia do descrente. Assim, quando o incrédulo diz: “Não posso aceitar suas pressuposições”, nós respondemos: “Bem, vamos falar mais um pouco e, talvez, elas se tornem mais atrativas (assim como você espera que as suas fiquem mais atraentes a mim) á medida que expomos nossas ideias com maior profundidade. Entretanto, continuemos a usar nossas pressuposições e vamos em frente com algumas coisas que ainda não discutimos”.
Em segundo lugar, nosso testemunho para o incrédulo jamais vem sozinho. Se Deus resolve nos usar como testemunhas para os seus propósitos, então ele sempre some um elemento sobrenatural ao testemunho – o Espírito Santo, operando em e com o mundo (Rm 15.18-19; 1Co 2.4-5, 12ss.; 2Co 3.15-18; 1Ts 1.5 [cf. 2.13]; 2Ts 2.13-14). Se, por qualquer razão, houver dúvida quanto a nossa própria habilidade de comunicação, certamente não haverá razão para dúvidas da habilidade do Espírito Santo. E, se nosso testemunho é fundamentalmente seu instrumento, então nossa estratégia deverá ser ditada pela sua Palavra e não pelas nossas suposições ditadas pelo senso comum.
Em terceiro lugar, é fato que agimos dessa maneira em casos similares que não são religiosos. Imagine alguém que vive em um mundo de sonhos – um paranoico, talvez, que creia que todo mundo quer matá-lo. Vamos chamá-lo de Oscar. Digamos que Oscar pressuponha tal horror, de maneira que cada ponto de evidência seja torcido para adequar á sua conclusão. Todo ato de bondade, por exemplo, torna-se, na visão de Oscar, evidência de um nefasto complô para apanhá-lo desarmado a fim de apunhalá-lo entre as costelas. Oscar faz o que fazer os incrédulos, conforme Romanos 1.21 ss. – torce a verdade pela mentira. O que poderá ajudá-lo? Certamente, não um critério “neutro”, pois esse não existe. Alguém terá de aceitar ou rejeitar suas pressuposições. É claro, a resposta é que arrazoaremos com ele em termos da verdade como a percebemos, mesmo que tal verdade conflite com suas mais profundas pressuposições.
Em algumas ocasiões, poderemos dizer: “Bem, nós dois parecemos arrazoar baseado em suposições diferentes, de maneira que não chegaremos a nenhum lugar”. Contudo, em outras ocasiões, nosso raciocínio poderá penetrar suas defesas. Afinal, Oscar é um ser humano. Em algum ponto, ele será capaz de ouvir e de se deixar transformar. Alguns paranoicos, ás vezes, revertem para a sanidade. Nós falamos a verdade com a esperança de que isto acontecerá, certos de que, se palavras são úteis em situações como essa, elas não poderão acumular mais mentiras, mas terão de portar a verdade a fim de produzir cura.
Creio, então, que uma aproximação “pressuposicional” [11] da apologética esteja assegurada não apenas pela Escritura, mas pelo senso comum!
Em quarto lugar, a apologética cristã pode assumir diversas formas. Se um descrente faz objeção á “circularidade” dos argumentos evidenciais cristãos, o cristão poderá simplesmente passar para outro argumento, como na apologética “ofensiva”, contra a própria epistemologia ou cosmovisão do incrédulo. Essa apologética também será circular no preciso sentido já estabelecido, mas de modo menos óbvio. Poderia ser apresentado socraticamente, em uma série de questões: Como você explica a universalidade das leis da lógica? Como você chega ao julgamento de que a vida humana vale a pena ser vivida? Ou, talvez, como o profeta Natã fez com Davi em face da sua relutância para se arrepender (2Sm 11-12), nós poderemos contar uma parábola para o descrente. Talvez, a parábola do rico estulto (Lc 12.6-21). Aqueles que creem que o pressuposicionalismo elimina a comunicação entre o crente e o incrédulo, menosprezam o poder de Deus para alcançar o coração do homem. Eles menosprezam também a riqueza e a variedade de uma apologética bíblica, a criatividade que Deus nos tem concedido para sermos seus porta-vozes, e as muitas formas que essa apologética pode tomar.
Em quinto lugar, em Doctrine of the Knowledge of God e em outros lugares, eu tenho distinguido entre argumento “circular estreito” e argumento “circular abrangente”. Um exemplo do primeiro é: “A Bíblia é a Palavra de Deus porque ela é a Palavra de Deus”. Poderia também ser dito: “A Bíblia é a Palavra de Deus porque ela assim o diz”. Há uma verdade vividamente exibida nesse argumento estreito, a saber, que não há autoridade maior do que a Escritura pela qual a Escritura possa ser julgada, e que, em uma análise final, temos de crer na Escritura na base do seu testemunho. Não obstante, o argumento estreito tem óbvias desvantagens, movendo-nos para o argumento circular abrangente.
O argumento abrangente diz: “A Bíblia é a Palavra de Deus por causa de diversas evidências” – e, então, especificar tais evidências. Agora, o argumento continua sendo circular em um sentido porque o apologeta escolhe, avalia e formula as evidências de maneiras controladas pela Escritura. Esse tipo de argumento tende a manter a atenção do descrente por mais tempo e é mais persuasivo. “Circularidade”, no sentido que tenho concedido, poderá ser tão abrangente quanto todo universo, pois todo fato testifica a verdade de Deus.
Notas:
[1] DKG inclui boa porção de reflexão sobre a centralidade do senhorio de Jesus na Escritura, na teologia cristã e na vida cristã. Á luz deste penetrante ensino central, as recentes asserções de que alguém poderia ser um crente sem confiar em Jesus como Senhor terão de ser rejeitadas não apenas como sendo erradas, mas como pensamento desviante. Entretanto, o ensino não deverá ser confundido com o do perfeccionismo. A sincera confissão de que Jesus é Senhor marca o começo, de fato, da essência do testemunho cristão, mas o cristão recente somente virá a entender e agir baseado nas plenas implicações do senhorio de Cristo de maneira gradual e progressiva.
[2] Sobre o papel da revelação natural, ver a seção com o mesmo título, neste mesmo capítulo.
[3] Um livro recente que ataca o pressuposicionalismo de Van Til e defende a aproximação tradicional é Classical Apologetics, de R. C. Sproul, John Gerstner e Arthur Lindsley (Grand Rapids, MI, Zondervan, 1984). Do outro lado estão o meu DKG ou qualquer outro livro de Van Til, como The Defense of the Faith. Ver minha crítica ao volume de Sproul, Gerstner e Lindsley, no Westminster Theological Journal, 47, 2 (outono de 1985), 279-299. Incluí, neste livro, o Apêndice A sobre essa matéria.
[4] Meu amigo, R. C. Sproul, em correpondência, insiste que a tradição clássica, notadamente Aquino e Sproul (!), não reivindicam “neutralidade”, mas, antes, apelas á revelação geral de Deus – sua revelação na natureza, história e consciência (ver as discussões de Rm 1 e da revelação natural, neste capítulo). Entretanto, nessa relação, Aquino distinguia não entre revelação especial e natural, mas, sim, entre razão e fé – isto é, entre raciocínio não amparado na Escritura e raciocínio nela amparado. Além disso, Aquino (interessantemente diferente de Sproul) tinha pouca consciência prática dos efeitos do pecado sobre o raciocínio humano de modo que era capaz de usar, de maneira acrítica com poucas exceções notáveis, os pontos de visto do filósofo pagão, Aristóteles. Diferente de Calvino, Aquino não acreditava que alguém necessitasse dos “óculos da Escritura” para corretamente interpretar a revelação de Deus na natureza. A meu ver, Aquino considerou o raciocínio de Aristóteles como não sendo pró ou anticristão, mas neutro. Quanto ao próprio Sproul, nada tenho para criticar sua exposição sobre os efeitos do pecado no raciocínio do descrente, discutida em Romanos 1. Ele claramente nega a neutralidade do pensamento do incrédulo (ver Classical Apologetics, 39-63). Portanto, ele reconhece que o encontro apologético entre o crente e o incrédulo não é um entre partes que busquem neutralidade, mas entre um descrente que tende a pensar contra a verdade e um crente que busca corrigir tal tendência – e que é inevitavelmente levado a tender na direção oposta. Contudo, não acho que essa discussão seja consistente com o tratamento da autonomia, nas páginas 231-240. Encorajar o incrédulo a pensar de maneira autônoma é o mesmo que encorajá-lo a pensar sem a correção da revelação – isto é, pensar de maneira “neutra” (que é, na verdade, pensar de maneira desobediente, substituindo os padrões de Deus pelos padrões do próprio descrente). (Para maiores detalhes sobre esse ponto, ver minhas críticas a Classical Apologetics, já citado.) Minha opinião é que os três autores desse livro não estavam inteiramente de acordo entre si mesmos. Comparando outros livros que tais cavalheiros escreveram independentemente, eu diria que o tratamento de Romanos 1 é obra de Sproul, e as páginas 231-240 são da lavra de Gerstner. Recebo bem a R. C. Sproul como um pressuposicionalista honorário, mas espero que ele tenha uma conversa com seus colegas a respeito da matéria.
[5] Ver DKG, 1-49, esp. P. 45. “Senhor”, na Escritura, refere-se ao suserano de um relacionamente pactual. Nesse relacionamento, o Senhor dirá aos seus servos pactuais a maneira pela qual devem viver e lhes promete as bênçãos que já lhes tem dado – seu “favor imerecido” ou graça que os motiva á obediência. Se as palavras de graça, lei e promessa, não haverá senhorio. Reconhecer o Senhor é crer e obedecer as suas palavras acima de qualquer outra coisa. E obedecer as palavras do Senhor dessa maneira significa aceitá-las como pressuposição últimas.
[6] Esse foi o entendimento do grande pensador holandês Abraham Kuyper. Ele viu que o senhoria de Cristo requer diferentes formas cristãs de cultura. Os cristãos deveriam produzir arte, ciência, filosofia, psicologia, academia histórica e bíblica e sistema político econômico que fossem distintamente cristãos. Também deveriam educar seus filhos de maneira distintivamente cristãs (observe a educação saturada da centralidade de Deus a que Dt 6.6ss. insta após o desafio de amar exclusivamente a Deus). Para muitos de nós, tais considerações ordenam a educação no lar ou em escolas cristãs para os nossos filhos, pois como, de outro modo, poderíamos competir com seus a sete horas diárias de ensino secularista nas escolas públicas, como a lei obriga? Em todo caso, os cristãos não podem tomar, acriticamente, o caminho mais fácil, seguindo o pensamento do mundo incrédulo. Considere o comentário de Kuyper: De todo território da criação, Jesus disse: “É meu”.
[7] Algumas pessoas tem tentado enfatizar a forma passada (aoristo) de “conhecer”, em Romanos 1.21, para provar que o conhecimento em vista é passado, não continuando no presente. O propósito de Paulo, nessa passagem, entretanto, é parte de um propósito mais abrangente em 1.1-3-3.21, de demonstrar que todos pecaram e, portanto, não podem ser justificados mediante as obras da lei (3.19-21). No capítulo 1, ele mostra que, mesmo sem acesso á lei escrita, os gentios são culpados de pecado diante de Deus (o cap. 2 lida com os judeus). Como poderiam ser responsabilizados sem acesso á lei escrita? Exatamente por causa do conhecimento de Deus que receberam por meio da criação. Se tal conhecimento fosse renegado ao passado, teríamos concluído que os gentios do presente não seriam mais responsáveis por suas ações, contrário ao que diz 3.9. A forma passada é usada (particípio) porque o tempo passado é dominante no contexto. Isso é apropriado porque a intenção de Paula é de embarcar na “história da supressão da verdade”, nos versículos 21-32. Claramente, ele não considera os eventos dos versículos 21-32 como mera história passada. Ele usa essa história para descrever a presente condição dos gentios diante de Deus. Portanto, o aoristo gnontes não deveria ser forçado para indicar exclusivamente o passado. Á medida que a supressão continua, também continua o conhecimento que faz da supressão um elemento de culpa.
[8] Obviamente, há uma complexidade, aqui, que requer mais explicação. Há diferentes tipos de conhecimento em vista, pois o conhecimento cristão de Deus (de que o descrente carece) é bem diferente do conhecimento que o incrédulo tem de Deus (Rm 1.21, 32). Além disso, há uma complexidade psicológica: o incrédulo sabe coisas em certo nível de consciência, as quais ele tenta banir para outros níveis. Colocando de maneira mais simples que posso, ele conhece a Deus, sabe o que Deus que dele, mas ele não quer que tal conhecimento influencie suas decisões, exceto negativamente. Conhecimento da vontade de Deus é que o instrui a desobedecer a Deus. Ver DKG, 1-61.
[9] Essa epistemologia é singularmente bíblica no sentido de que um descrente não poderá, consistentemente, aceitá-la. De fato, a revelação de Deus na criação e na Escritura é seu ponto central. Qualquer teoria do conhecimento tem de especificar seu padrão ou critério último para a determinação da verdade ou da falsidade. O padrão final para os cristãos é a Palavra de Deus na Escritura; o padrão do incrédulo está colocado em outro lugar. Ver DKG, em que essa epistemologia é tratada mais detalhadamente.
[10] Dados esses esclarecimentos, não me preocupo muito se o apologeta cristão aceito ou rejeita o termo circular para descrever tal tipo de argumento. Há perigos óbvios de desentendimento em seu uso; perigos que procurei enfrentar em DKG. Mas me inclino mais, agora, a dizer aos meus críticos: “Dada a sua definição de circularidade, eu não creio nela”.
[11] Particulamente, não aprecio o termo pressuposicional como descrito na apologética de Van Til ou na minha, embora seja com frequência usado dessa forma. Pressuposições são, geralmente, contrastadas com evidências, de maneira que, chamar um sistema de pressuposicional tende a portar a mensagem de que um sistema reconhece a importância de pressuposições, mas despreza evidências. Gordon Clark usou o termo a seu respeito, corretamente, porque tinha uma visão cética daquilo que poderia se conhecer mediante a experiência sensorial humana e, assim, uma visão também cética daquilo que é comumente chamado de “evidência”. Ele acreditava que o termo conhecimento deveria ser reservado somente para aquilo que aprendemos da Escritura. Van Til, entretanto, não tinha tal visão cética da experiência sensorial, não acreditava que o conhecimento estivesse restrito á Bíblia da maneira como anteriormente colocado, e não se inclinava a rejeitar o uso de evidências. Assim, o pressuposicionalismo, usado no sentido de Clark, não é uma descrição da posição de Van Til ou da minha. Outros, como (eu creio) John Gestner, entenderam mal o uso vantiliano do termo. Eles enfatizaram o prefixo pré em pressuposição e, então, concluíram que pressuposição fosse algo em que alguém crê antes (em relação ao tempo) de crer alguma coisa. Esse é um erro. O pré deveria ser entendido principalmente como indicador e eminência (e.g., preeminência), não no sentido de prioridade temporal. (Entretanto, há um sentido em que a pressuposiçao cristã – isto é, o conhecimento da verdade que até mesmo os descrentes têm enquanto o desonram – é temporalmente anterior: está presente desde o início da vida.) Outros ainda equiparam pressuposição a hipótese ou assumem que seja uma suposição arbitrária e sem base. (Na visão de Van Til, pressuposições são baseadas em revelação divina e são categóricas, não hipotéticas.) Com tanta confusão por aí, reluto em usar o termo, totalmente! Ainda assim, não quero contender acerca de palavras, e o termo já se tornou um rótulo padrão por todos aqueles que entendem que não existe neutralidade religiosa no pensamento e no conhecimento. Desse modo, usarei o termo ocasionalmente em relação a mim e a Van Til, como meio de acomodação e para enfatizar o que compartilhamos com Clark e com outros: a rejeição da neutralidade.
Referência:
FRAME, John. Apologética para a glória de Deus, ed. Cultura Cristã, pg. 15-20.
Será que tal procedimento mereceria ser condenado como sendo “circular”? Todo mundo raciocina da mesma maneira. Cada filosofia usa os próprios padrões a fim de provar suas conclusões; de outro modo, seria inconsistente. Aqueles que creem que a razão humana é a autoridade final (racionalistas) terão de pressupor a autoridade da razão para elaborar seus argumentos em favor do racionalismo. Os que acreditam na ultimação da experiência sensorial terão de pressupor isso ao argumentar em favor de sua filosofia (empirismo). E os céticos terão de ser céticos em relação ao próprio ceticismo (um fato que, é claro, é o calcanhar-de-aquiles do ceticismo). O ponto é que, quando alguém argumenta quanto á necessidade de um critério último – Escritura, Alcorão, razão humana, sensação ou o que quer que seja – terá de usar um critério compatível com a sua conclusão. Se isso significar circularidade, então todo mundo será culpado de circularidade. [10]
Isso eliminaria a possibilidade de comunicação entre o crente e o incrédulo? Parece que sim. O cristão argumenta baseado em critérios bíblicos, que a ressurreição é um fato. O não cristão replica que não pode aceitar tais critérios e que não aceitará a ressurreição a menos que seja provada, digamos, pelos padrões do empirismo de Hume. Nós respondemos que não podemos aceitar as pressuposições de Hume. O descrente diz que não pode aceitar as nossas. Será que isso terminaria a conversa?
Certamente não, por diversas razões.
Em primeiro lugar, repito, a Escritura nos diz que Deus se revelou claramente ao incrédulo, de maneira que o descrente conhece a Deus (Rm 1.21). Embora ele reprima tal conhecimento (vs. 21 ss.), em algum nível de sua consciência há uma memória dessa revelação. É contra essa memória que ele peca e por causa dela é que ele é responsabilizado por seus pecados. Nesse nível, ele sabe que o empirismo está errado e que os padrões da Escritura estão certos. Nós dirigimos nosso testemunho apologético não á sua epistemologia empirista ou outra, mas á sua memória da revelação de Deus á epistemologia implícita nessa revelação. Para alcançar comunicação significante, não só podemos, mas devemos usar critérios cristãos em vez de os critérios da epistemologia do descrente. Assim, quando o incrédulo diz: “Não posso aceitar suas pressuposições”, nós respondemos: “Bem, vamos falar mais um pouco e, talvez, elas se tornem mais atrativas (assim como você espera que as suas fiquem mais atraentes a mim) á medida que expomos nossas ideias com maior profundidade. Entretanto, continuemos a usar nossas pressuposições e vamos em frente com algumas coisas que ainda não discutimos”.
Em segundo lugar, nosso testemunho para o incrédulo jamais vem sozinho. Se Deus resolve nos usar como testemunhas para os seus propósitos, então ele sempre some um elemento sobrenatural ao testemunho – o Espírito Santo, operando em e com o mundo (Rm 15.18-19; 1Co 2.4-5, 12ss.; 2Co 3.15-18; 1Ts 1.5 [cf. 2.13]; 2Ts 2.13-14). Se, por qualquer razão, houver dúvida quanto a nossa própria habilidade de comunicação, certamente não haverá razão para dúvidas da habilidade do Espírito Santo. E, se nosso testemunho é fundamentalmente seu instrumento, então nossa estratégia deverá ser ditada pela sua Palavra e não pelas nossas suposições ditadas pelo senso comum.
Em terceiro lugar, é fato que agimos dessa maneira em casos similares que não são religiosos. Imagine alguém que vive em um mundo de sonhos – um paranoico, talvez, que creia que todo mundo quer matá-lo. Vamos chamá-lo de Oscar. Digamos que Oscar pressuponha tal horror, de maneira que cada ponto de evidência seja torcido para adequar á sua conclusão. Todo ato de bondade, por exemplo, torna-se, na visão de Oscar, evidência de um nefasto complô para apanhá-lo desarmado a fim de apunhalá-lo entre as costelas. Oscar faz o que fazer os incrédulos, conforme Romanos 1.21 ss. – torce a verdade pela mentira. O que poderá ajudá-lo? Certamente, não um critério “neutro”, pois esse não existe. Alguém terá de aceitar ou rejeitar suas pressuposições. É claro, a resposta é que arrazoaremos com ele em termos da verdade como a percebemos, mesmo que tal verdade conflite com suas mais profundas pressuposições.
Em algumas ocasiões, poderemos dizer: “Bem, nós dois parecemos arrazoar baseado em suposições diferentes, de maneira que não chegaremos a nenhum lugar”. Contudo, em outras ocasiões, nosso raciocínio poderá penetrar suas defesas. Afinal, Oscar é um ser humano. Em algum ponto, ele será capaz de ouvir e de se deixar transformar. Alguns paranoicos, ás vezes, revertem para a sanidade. Nós falamos a verdade com a esperança de que isto acontecerá, certos de que, se palavras são úteis em situações como essa, elas não poderão acumular mais mentiras, mas terão de portar a verdade a fim de produzir cura.
Creio, então, que uma aproximação “pressuposicional” [11] da apologética esteja assegurada não apenas pela Escritura, mas pelo senso comum!
Em quarto lugar, a apologética cristã pode assumir diversas formas. Se um descrente faz objeção á “circularidade” dos argumentos evidenciais cristãos, o cristão poderá simplesmente passar para outro argumento, como na apologética “ofensiva”, contra a própria epistemologia ou cosmovisão do incrédulo. Essa apologética também será circular no preciso sentido já estabelecido, mas de modo menos óbvio. Poderia ser apresentado socraticamente, em uma série de questões: Como você explica a universalidade das leis da lógica? Como você chega ao julgamento de que a vida humana vale a pena ser vivida? Ou, talvez, como o profeta Natã fez com Davi em face da sua relutância para se arrepender (2Sm 11-12), nós poderemos contar uma parábola para o descrente. Talvez, a parábola do rico estulto (Lc 12.6-21). Aqueles que creem que o pressuposicionalismo elimina a comunicação entre o crente e o incrédulo, menosprezam o poder de Deus para alcançar o coração do homem. Eles menosprezam também a riqueza e a variedade de uma apologética bíblica, a criatividade que Deus nos tem concedido para sermos seus porta-vozes, e as muitas formas que essa apologética pode tomar.
Em quinto lugar, em Doctrine of the Knowledge of God e em outros lugares, eu tenho distinguido entre argumento “circular estreito” e argumento “circular abrangente”. Um exemplo do primeiro é: “A Bíblia é a Palavra de Deus porque ela é a Palavra de Deus”. Poderia também ser dito: “A Bíblia é a Palavra de Deus porque ela assim o diz”. Há uma verdade vividamente exibida nesse argumento estreito, a saber, que não há autoridade maior do que a Escritura pela qual a Escritura possa ser julgada, e que, em uma análise final, temos de crer na Escritura na base do seu testemunho. Não obstante, o argumento estreito tem óbvias desvantagens, movendo-nos para o argumento circular abrangente.
O argumento abrangente diz: “A Bíblia é a Palavra de Deus por causa de diversas evidências” – e, então, especificar tais evidências. Agora, o argumento continua sendo circular em um sentido porque o apologeta escolhe, avalia e formula as evidências de maneiras controladas pela Escritura. Esse tipo de argumento tende a manter a atenção do descrente por mais tempo e é mais persuasivo. “Circularidade”, no sentido que tenho concedido, poderá ser tão abrangente quanto todo universo, pois todo fato testifica a verdade de Deus.
Notas:
[1] DKG inclui boa porção de reflexão sobre a centralidade do senhorio de Jesus na Escritura, na teologia cristã e na vida cristã. Á luz deste penetrante ensino central, as recentes asserções de que alguém poderia ser um crente sem confiar em Jesus como Senhor terão de ser rejeitadas não apenas como sendo erradas, mas como pensamento desviante. Entretanto, o ensino não deverá ser confundido com o do perfeccionismo. A sincera confissão de que Jesus é Senhor marca o começo, de fato, da essência do testemunho cristão, mas o cristão recente somente virá a entender e agir baseado nas plenas implicações do senhorio de Cristo de maneira gradual e progressiva.
[2] Sobre o papel da revelação natural, ver a seção com o mesmo título, neste mesmo capítulo.
[3] Um livro recente que ataca o pressuposicionalismo de Van Til e defende a aproximação tradicional é Classical Apologetics, de R. C. Sproul, John Gerstner e Arthur Lindsley (Grand Rapids, MI, Zondervan, 1984). Do outro lado estão o meu DKG ou qualquer outro livro de Van Til, como The Defense of the Faith. Ver minha crítica ao volume de Sproul, Gerstner e Lindsley, no Westminster Theological Journal, 47, 2 (outono de 1985), 279-299. Incluí, neste livro, o Apêndice A sobre essa matéria.
[4] Meu amigo, R. C. Sproul, em correpondência, insiste que a tradição clássica, notadamente Aquino e Sproul (!), não reivindicam “neutralidade”, mas, antes, apelas á revelação geral de Deus – sua revelação na natureza, história e consciência (ver as discussões de Rm 1 e da revelação natural, neste capítulo). Entretanto, nessa relação, Aquino distinguia não entre revelação especial e natural, mas, sim, entre razão e fé – isto é, entre raciocínio não amparado na Escritura e raciocínio nela amparado. Além disso, Aquino (interessantemente diferente de Sproul) tinha pouca consciência prática dos efeitos do pecado sobre o raciocínio humano de modo que era capaz de usar, de maneira acrítica com poucas exceções notáveis, os pontos de visto do filósofo pagão, Aristóteles. Diferente de Calvino, Aquino não acreditava que alguém necessitasse dos “óculos da Escritura” para corretamente interpretar a revelação de Deus na natureza. A meu ver, Aquino considerou o raciocínio de Aristóteles como não sendo pró ou anticristão, mas neutro. Quanto ao próprio Sproul, nada tenho para criticar sua exposição sobre os efeitos do pecado no raciocínio do descrente, discutida em Romanos 1. Ele claramente nega a neutralidade do pensamento do incrédulo (ver Classical Apologetics, 39-63). Portanto, ele reconhece que o encontro apologético entre o crente e o incrédulo não é um entre partes que busquem neutralidade, mas entre um descrente que tende a pensar contra a verdade e um crente que busca corrigir tal tendência – e que é inevitavelmente levado a tender na direção oposta. Contudo, não acho que essa discussão seja consistente com o tratamento da autonomia, nas páginas 231-240. Encorajar o incrédulo a pensar de maneira autônoma é o mesmo que encorajá-lo a pensar sem a correção da revelação – isto é, pensar de maneira “neutra” (que é, na verdade, pensar de maneira desobediente, substituindo os padrões de Deus pelos padrões do próprio descrente). (Para maiores detalhes sobre esse ponto, ver minhas críticas a Classical Apologetics, já citado.) Minha opinião é que os três autores desse livro não estavam inteiramente de acordo entre si mesmos. Comparando outros livros que tais cavalheiros escreveram independentemente, eu diria que o tratamento de Romanos 1 é obra de Sproul, e as páginas 231-240 são da lavra de Gerstner. Recebo bem a R. C. Sproul como um pressuposicionalista honorário, mas espero que ele tenha uma conversa com seus colegas a respeito da matéria.
[5] Ver DKG, 1-49, esp. P. 45. “Senhor”, na Escritura, refere-se ao suserano de um relacionamente pactual. Nesse relacionamento, o Senhor dirá aos seus servos pactuais a maneira pela qual devem viver e lhes promete as bênçãos que já lhes tem dado – seu “favor imerecido” ou graça que os motiva á obediência. Se as palavras de graça, lei e promessa, não haverá senhorio. Reconhecer o Senhor é crer e obedecer as suas palavras acima de qualquer outra coisa. E obedecer as palavras do Senhor dessa maneira significa aceitá-las como pressuposição últimas.
[6] Esse foi o entendimento do grande pensador holandês Abraham Kuyper. Ele viu que o senhoria de Cristo requer diferentes formas cristãs de cultura. Os cristãos deveriam produzir arte, ciência, filosofia, psicologia, academia histórica e bíblica e sistema político econômico que fossem distintamente cristãos. Também deveriam educar seus filhos de maneira distintivamente cristãs (observe a educação saturada da centralidade de Deus a que Dt 6.6ss. insta após o desafio de amar exclusivamente a Deus). Para muitos de nós, tais considerações ordenam a educação no lar ou em escolas cristãs para os nossos filhos, pois como, de outro modo, poderíamos competir com seus a sete horas diárias de ensino secularista nas escolas públicas, como a lei obriga? Em todo caso, os cristãos não podem tomar, acriticamente, o caminho mais fácil, seguindo o pensamento do mundo incrédulo. Considere o comentário de Kuyper: De todo território da criação, Jesus disse: “É meu”.
[7] Algumas pessoas tem tentado enfatizar a forma passada (aoristo) de “conhecer”, em Romanos 1.21, para provar que o conhecimento em vista é passado, não continuando no presente. O propósito de Paulo, nessa passagem, entretanto, é parte de um propósito mais abrangente em 1.1-3-3.21, de demonstrar que todos pecaram e, portanto, não podem ser justificados mediante as obras da lei (3.19-21). No capítulo 1, ele mostra que, mesmo sem acesso á lei escrita, os gentios são culpados de pecado diante de Deus (o cap. 2 lida com os judeus). Como poderiam ser responsabilizados sem acesso á lei escrita? Exatamente por causa do conhecimento de Deus que receberam por meio da criação. Se tal conhecimento fosse renegado ao passado, teríamos concluído que os gentios do presente não seriam mais responsáveis por suas ações, contrário ao que diz 3.9. A forma passada é usada (particípio) porque o tempo passado é dominante no contexto. Isso é apropriado porque a intenção de Paula é de embarcar na “história da supressão da verdade”, nos versículos 21-32. Claramente, ele não considera os eventos dos versículos 21-32 como mera história passada. Ele usa essa história para descrever a presente condição dos gentios diante de Deus. Portanto, o aoristo gnontes não deveria ser forçado para indicar exclusivamente o passado. Á medida que a supressão continua, também continua o conhecimento que faz da supressão um elemento de culpa.
[8] Obviamente, há uma complexidade, aqui, que requer mais explicação. Há diferentes tipos de conhecimento em vista, pois o conhecimento cristão de Deus (de que o descrente carece) é bem diferente do conhecimento que o incrédulo tem de Deus (Rm 1.21, 32). Além disso, há uma complexidade psicológica: o incrédulo sabe coisas em certo nível de consciência, as quais ele tenta banir para outros níveis. Colocando de maneira mais simples que posso, ele conhece a Deus, sabe o que Deus que dele, mas ele não quer que tal conhecimento influencie suas decisões, exceto negativamente. Conhecimento da vontade de Deus é que o instrui a desobedecer a Deus. Ver DKG, 1-61.
[9] Essa epistemologia é singularmente bíblica no sentido de que um descrente não poderá, consistentemente, aceitá-la. De fato, a revelação de Deus na criação e na Escritura é seu ponto central. Qualquer teoria do conhecimento tem de especificar seu padrão ou critério último para a determinação da verdade ou da falsidade. O padrão final para os cristãos é a Palavra de Deus na Escritura; o padrão do incrédulo está colocado em outro lugar. Ver DKG, em que essa epistemologia é tratada mais detalhadamente.
[10] Dados esses esclarecimentos, não me preocupo muito se o apologeta cristão aceito ou rejeita o termo circular para descrever tal tipo de argumento. Há perigos óbvios de desentendimento em seu uso; perigos que procurei enfrentar em DKG. Mas me inclino mais, agora, a dizer aos meus críticos: “Dada a sua definição de circularidade, eu não creio nela”.
[11] Particulamente, não aprecio o termo pressuposicional como descrito na apologética de Van Til ou na minha, embora seja com frequência usado dessa forma. Pressuposições são, geralmente, contrastadas com evidências, de maneira que, chamar um sistema de pressuposicional tende a portar a mensagem de que um sistema reconhece a importância de pressuposições, mas despreza evidências. Gordon Clark usou o termo a seu respeito, corretamente, porque tinha uma visão cética daquilo que poderia se conhecer mediante a experiência sensorial humana e, assim, uma visão também cética daquilo que é comumente chamado de “evidência”. Ele acreditava que o termo conhecimento deveria ser reservado somente para aquilo que aprendemos da Escritura. Van Til, entretanto, não tinha tal visão cética da experiência sensorial, não acreditava que o conhecimento estivesse restrito á Bíblia da maneira como anteriormente colocado, e não se inclinava a rejeitar o uso de evidências. Assim, o pressuposicionalismo, usado no sentido de Clark, não é uma descrição da posição de Van Til ou da minha. Outros, como (eu creio) John Gestner, entenderam mal o uso vantiliano do termo. Eles enfatizaram o prefixo pré em pressuposição e, então, concluíram que pressuposição fosse algo em que alguém crê antes (em relação ao tempo) de crer alguma coisa. Esse é um erro. O pré deveria ser entendido principalmente como indicador e eminência (e.g., preeminência), não no sentido de prioridade temporal. (Entretanto, há um sentido em que a pressuposiçao cristã – isto é, o conhecimento da verdade que até mesmo os descrentes têm enquanto o desonram – é temporalmente anterior: está presente desde o início da vida.) Outros ainda equiparam pressuposição a hipótese ou assumem que seja uma suposição arbitrária e sem base. (Na visão de Van Til, pressuposições são baseadas em revelação divina e são categóricas, não hipotéticas.) Com tanta confusão por aí, reluto em usar o termo, totalmente! Ainda assim, não quero contender acerca de palavras, e o termo já se tornou um rótulo padrão por todos aqueles que entendem que não existe neutralidade religiosa no pensamento e no conhecimento. Desse modo, usarei o termo ocasionalmente em relação a mim e a Van Til, como meio de acomodação e para enfatizar o que compartilhamos com Clark e com outros: a rejeição da neutralidade.
Referência:
FRAME, John. Apologética para a glória de Deus, ed. Cultura Cristã, pg. 15-20.
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