sábado, 24 de maio de 2014

História dos Apócrifos

Roger T. Beckwith
OS APÓCRIFOS

As edições maiores da Bíblia em língua inglesa - desde a Grande Bíblia de Tyndale e Coverdale (1539) - muitas vezes incluem uma seção separada entre o Antigo e o Novo Testamento intitulada "Apócrifos". Consiste no acréscimo de livros inteiros ou em parte. A Bíblia em latim, a Vulgata, traduzida por Jerônimo (entre 382 e 405 d.C.), inseriu os Apócrifos no próprio Antigo Testamento – alguns livros como elementos á parte e outros como anexos ou acréscimos dos livros bíblicos de Ester, Jeremias e Daniel. Nas versões católicas romanas da Bíblia, como a Versão de Douay e a Bíblia de Jerusalém, esses elementos se encontram na mesma posição em que eram dispostos antes da Reforma. Nas traduções protestantes, contudo, os Apócrifos são totalmente omitidos ou agrupados em seção separada.

Como a Vulgata de Jerônimo passou a incluir os Apócrifos

Ao distinguir os Apócrifos dos livros do Antigo Testamento, os tradutores protestantes não fizeram nada que fosse totalmente original, pois apenas puseram em prática mais do que nunca os princípios em que Jerônimo (345-420 d. C.) se baseara ao empreender sua tradução do Antigo Testamento para o latim, a grande Vulgata latina. A Vulgata foi traduzida do original hebraico. No entanto, a tradução anterior à Vulgata, a Vetus latina [Antiga latina], foi vertida a partir do Antigo Testamento grego, a Septuaginta (ou LXX). Em algum ponto, inicial ou posterior, os livros e os textos que não integravam a Bíblia hebraica acabaram adicionados ao Antigo Testamento grego, e de lá passaram para a Vetus latina. Jerônimo os manteve em sua nova tradução, a Vulgata, mas incluiu notas explicativas em vários pontos para destacar que os acréscimos não consistiam em partes genuínas da Bíblia, designando-os “apócrifos” (gr., apokrypha, “os que haviam sido escondidos”). De acordo com o ensino de Jerônimo – e com o entendimento sobre o cânon do Antigo Testamento defendido por Jesus, pelos autores do Novo Testamento e pelos judeus do primeiro século (v. Cap. 8) -, os tradutores protestantes do século 16 não consideraram esses escritos parte do Antigo Testamento, mas os reuniram em outra seção a que eles também, como Jerônimo, chamaram de “Apócrifos”.

A razão de Jerônimo ter escolhido esse nome não é evidente de imediato. Provavelmente ele seguiu os passos de Orígenes, que um século e meio antes havia declarado que os judeus usaram esse nome para designar seus livros não canônicos mais apreciados. Orígenes e Jerônimo eram dois dos mais distintos estudiosos do judaísmo entre os pais da igreja; portanto, seria natural que eles usassem o termo de acordo com o sentido judaico, ainda que o aplicassem aos livros judeus não canônicos mais estimados pelos cristãos. Os judeus jamais destruiriam livros religiosos respeitados; sendo inadequados para o uso, eles seriam escondidos e deixados para se deteriorarem de forma natural. Assim, o termo “escondidos” passou a significar “muito estimados, ainda que não canônicos”.

Jerônimo não limitou o uso de “Apócrifos” aos livros judaicos; também o empregou para designar os livros não canônicos de origem cristã – como O pastor, de Hermas -, muito populares entre os cristãos. Segue a mesma ideia a expressão moderna “Apócrifos do Novo Testamento”, que designa obras tardias que imitam escritos do Novo Testamento.

Como as traduções grega e latina passaram a incluir os apócrifos

É muito variado o entendimento sobre como o Antigo Testamento grego e, por consequência, o latino, passaram a incluir os Apócrifos. O Códice alexandrino (o grande manuscrito do quinto século d.C. de toda a Bíblia grega) foi impresso e publicado no século 18. Pelo fato de esse códice conter os Apócrifos, os editores do século 18 presumiram que o Antigo Testamento desse manuscrito cristão tivesse sido copiado de manuscritos judaicos que também os incluíam, e que, por consequência, os Apócrifos deveriam integrar a tradução e o cânon dos judeus de língua grega de Alexandria – que o produziram no período pré-cristão (ainda que eles não integrassem a Bíblia ou o cânon dos judeus de língua semita da Palestina). Essa hipótese foi sustentada por longo tempo, e outro pressuposto – de que a maior parte dos livros Apócrifos foi composta em grego, fora da Palestina – foi formulado para apoiá-la.

Sabe-se hoje que todos os elementos dessa teoria são infundados: 1) Os manuscritos de pele de animal suficientemente grandes para conter todo o Antigo Testamento passaram a existir entre cristãos ou judeus apenas na parte final do quarto século. Os manuscritos bíblicos mais antigos de origem cristã se encontram em papiros, e sua extensão equivale apenas ao tamanho de três dos maiores livros. 2) Os judeus de Alexandria eram orientados em grande parte pela comunidade da Palestina, e seria muito improvável que eles estabelecessem um cânon diferente; além disso, seu maior escritor, Filo, apesar de fazer citações frequentes do Antigo Testamento em suas alentadas obras, jamais fez referência a nenhum dos Apócrifos. 3) Os manuscritos bíblicos mais antigos de origem cristã contêm pouquíssimos livros apócrifos, e, até cerca de 313 d. C., apenas Sabedoria, Tobias e Eclesiástico chegaram a estar presentes; só mais tarde foram acrescentados os outros livros apócrifos. 4) Não se crê mais que os Apócrifos tenham sido compostos majoritariamente em grego ou fora da Palestina, e o próprio Eclesiástico (Sirácida) declara ter sido escrito em hebraico (cf. Seu prólogo; grande parte de seu texto hebraico já foi recuperado). Quase todos os Apócrifos, excetuando-se Sabedoria, 2Macabeus, podem de fato ter sido traduzidos a partir do original hebraico ou aramaico, escrito na Palestina.

O uso dos Apócrifos pelos escritores cristãos confirma a análise mencionada anteriormente. O Novo Testamento parece demonstrar o conhecimento de um ou outro texto apócrifo, mas nunca lhes confere autoridade como faz com muitos livros canônicos do Antigo Testamento. Ainda que o Novo Testamento cite várias partes do Antigo cerca de trezentas vezes, na verdade ele nunca cita os Apócrifos (os versículos 14 e 16 de Judas não contêm uma citação dos Apócrifos, mas de outro escrito judaico, 1Enoque). No segundo século, Justino Mártir e Teófilo de Antioquia, que mencionavam com frequência o Antigo Testamento, jamais aludiram a nenhum livro dos Apócrifos. No fim do segundo século, Sabedoria, Tobias e Eclesiástico foram algumas vezes tratados como Escritura, mas isso jamais ocorreu com nenhum outro texto apócrifo. A aceitação definitiva deles nas traduções grega e latina foi um processo vagaroso. Quase o mesmo se pode dizer das listas cristãs dos livros do Antigo Testamento: as mais velhas incluem alguns escritos apócrifos; e a mais antiga de todas, a de Melito (c. 170 d. C.), não inclui nenhum.

Aceitação e rejeição dos Apócrifos

A disposição crescente da igreja anterior à Reforma de tratar os Apócrifos não só como obras de edificação, mas como a própria Escritura refletia o fato de que os cristãos – em especial os que viviam fora de países de línguas semíticas – estavam perdendo o contato com a tradição judaica. Entretanto, nesses países se manteve uma tradição cristã culta semelhante aos elementos da tradição judaica, sobretudo por estudiosos como Orígenes, Epifânio e Jerônimo, que cultivavam o aprendizado da língua hebraica e a manutenção dos estudos judaicos. No final do quarto século, Jerônimo considerou necessário destacar com grande ênfase a distinção entre os Apócrifos e os livros inspirados do Antigo Testamento, e uma pequena parte de escritores continuou fazendo a mesma distinção durante toda a Idade Média, até o surgimento dos reformadores protestantes, que fizeram dessa distinção parte importante de sua doutrina da Escritura. No Concílio de Trento (1545-1563), entretanto, a Igreja de Roma tentou suprimir a diferença e situar os Apócrifos (com exceção de 1 e 2Esdras e Oração de Manassés) no mesmo nível dos livros inspirados do Antigo Testamento. Isso se deu como consequência de três fatores: 1) a exaltação da doutrina da tradição oral por parte de Roma, 2) seu entendimento de que a igreja é capaz de criar Escrituras e 3) sua aceitação de certos conceitos controvertidos (em especial as doutrinas do purgatório, das indulgências, da justiça das obras como contribuição para a justificação), criados com base em algumas passagens dos Apócrifos. Esses ensinos deram apoio à reação do catolicismo romano contra Martinho Lutero e outros líderes da Reforma protestante, iniciada em 1517.

Por causa dessas passagens controvertidas, alguns protestantes cessaram por completo de usar os Apócrifos. No entanto, outros protestantes (em especial luteranos e anglicanos), ainda que evitassem essas passagens e as ideias nelas contidas, continuaram lendo os Apócrifos de forma geral como literatura religiosa edificante. Os Apócrifos, como os outros escritos pós-canônicos (em especial os Pseudepigráficos, os manuscritos do mar Morto, os escritos de Filo e de Josefo, os Targuns e a literatura rabínica antiga) podem ser úteis de outras formas. Eles apresentam as interpretações mais antigas dos escritos do Antigo Testamento; explicam o que aconteceu no período entre os dois Testamentos; apresentam costumes, ideias e expressões que fornecem um repertório útil para a leitura do Novo Testamento.

O conteúdo dos Apócrifos

São quinze os livros que compõem os Apócrifos (há quem conte apenas catorze ou doze livros, por considerar alguns deles em conjunto), e consistem em diversos tipos de escritos – narrativa, provérbios, profecia e liturgia. Provavelmente datam do terceiro século a. C. (Tobias) ao primeiro século d. C. (2Esdras e talvez a Oração de Manassés).

1. 1Esdras, algumas vezes chamado 3Esdras, cobre o mesmo assunto do livro de Esdras, com acréscimos de um pouco de Crônicas e de Neemias. Também relata um debate sobre “o que há de mais forte no mundo”.

2. 2Esdras, algumas vezes chamado 4Esdras, é um apocalipse pseudonímico, preservado em latim, mas não em grego, com dois capítulos cristãos acrescidos no princípio e outros dois no final. O capítulo 14 apresenta o número de livros do Antigo Testamento. No cânon católico romano, 1 e 2Esdras não foram incluídos.

3. Tobias é uma fábula moral com ambientação persa, e trata de esmolas, casamento e enterro.

4. Judite é uma trama interessante, num ambiente histórico confuso, a respeito de uma heroína piedosa e patriota.

5. Os Acréscimos a Ester são uma coletânea de passagens acrescidas à versão de Ester na Lxx, e destacam o caráter religioso deste livro.

6. Sabedoria é uma obra inspirada em Provérbios e atribuída a Salomão.

7. Eclesiástico, também chamado Sirácida, é uma obra semelhante a Sabedoria e de autor indicado pelo nome (Jesua ben Siraque, ou Jesus, o filho de Eclesiástico). Foi escrito por volta de 180 a. C., e seu catálogo de homens famosos dá testemunho importante sobre o conteúdo do cânon do Antigo Testamento naquela data. O prólogo do tradutor, escrito meio século mais tarde, faz repetidas referências às três seções da Bíblia hebraica.

8. Baruque foi atribuído ao companheiro de Jeremias e imita um pouco seu estilo.

9. A Epístola de Jeremias tem ligação com Baruque, e algumas vezes os dois escritos são contados como um único livro (como na King James version [Versão do rei Tiago], que assim alista catorze livros, e não quinze).

Os acréscimos a Daniel consistem em três segmentos (10, 11 e 12 nesta lista).

10-11. Susana e Bel e o dragão são histórias que narram como o sábio Daniel expôs juízes injustos e sacerdotes pagãos e embusteiros.

12. O Cântico dos três jovens contém uma oração e um hino atribuídos aos três companheiros de Daniel quando se encontram na fornalha; o hino é usado no culto cristão e conhecido como Benedicite (nos serviços religiosos da Igreja da Inglaterra).

Como foi dito antes, algumas autoridades contam esses três livros (10,11 e 12) como um só, ou seja, Os acréscimos de Daniel, e também contam Baruque como um livro que contém a Epístola de Jeremias; assim, sua contagem alista apenas doze livros apócrifos.

13. A Oração de Manassés põe em palavras a oração de Manassés por perdão encontrada em 2Crônicas 33.12,13. Esse livro não se encontra no cânon católico romano.

14-15. 1 e 2Macabeus relatam a revolta bem-sucedida dos macabeus em meados do segundo século a. C. Contra Antíoco Epifânio, o perseguidor sírio de cultura helenista. O primeiro livro e partes do segundo são as fontes históricas primárias para o conhecimento a respeito da fé heroica dos macabeus, ainda que o segundo livro acrescente material lendário. Na Septuaginta, encontram-se também 3 e 4Macabeus, mas esses têm menor importância.

O desenvolvimento do pensamento religioso nos apócrifos

O desenvolvimento do pensamento religioso encontrado nos Apócrifos, que extrapola o ensino do Antigo Testamento, deve ser avaliado pelo ensino do Novo. Por exemplo, Sabedoria 4.7-5.16 ensina que todos enfrentam o juízo pessoal após a morte. Isso condiz com o posterior do Novo Testamento (Hb 9.27).

Outros ensinamentos acrescentam material doutrinário estranho ao ensino do Novo Testamento, como os seguintes:

1. Em Tobias 12.15, declara-se que sete anjos permanecem diante de Deus e apresentam as orações dos santos.

2. Em 2Macabeus15.13,14, afirma-se que um profeta falecido ora a favor do povo de Deus na terra.

3. Em Sabedoria 8.19,20 e em Eclesiástico 1.14, o leitor fica sabendo que os justos são as pessoas que receberam uma alma boa ao nascer.

4. Em Tobias 12.9 e em Eclesiástico 3.3, o leitor é informado de que suas boas obras expiam seus atos maus.

5. Em 2Macabeus 12.40-45, incentiva-se a oração pelo perdão dos pecados dos mortos.

As duas primeiras ideias não encontram nenhum apoio no Antigo Testamento nem no Novo, e a segunda pode ter dado algum apoio ao conceito católico romano da oração aos santos falecidos. Os últimos três princípios sem dúvida contrariam o ensino do Novo Testamento sobre a regeneração, a justificação e a vida presente como o período de provação.


Os Apócrifos, por conseguinte, devem ser lidos com cuidado. Embora muito do que está presente neles reflita o judaísmo praticado em data posterior ao Antigo Testamento e alguns trechos apresentam desenvolvimento na direção do Novo Testamento, há também algumas passagens enganosas que até encontram certo interesse histórico, mas, da perspectiva da teologia e da prática cristãs, devem ser evitadas.


Referência:

BECKWITH, Roger T., Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, ed. Vida Nova; cap. 10 (Os Apócrifos), p. 90-98.

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