sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Os dons espirituais da atualidade como análogos dos dons apostólicos: A afirmação da obra extraordinária do Espírito Santo dentro da teologia cessacionista – Parte III


Vern Sheridan Poythress

VIII. Comandos ou direções
Agora, e quanto às instâncias que envolvem comandos ou direções pessoais? R.C. Sproul relata um incidente quando pensamentos surgiram abruptamente em sua cabeça “vá pelo mundo e pregue o Evangelho a toda alma viva… E leve Vesta  [a então futura esposa de R.C. Sproul] com você” [1]. Mais controversos são os casos nos quais um ser-humano dá um comando para outro: Abe diz para Bill “O Senhor diz que você está para se tornar um missionário em Moçambique”.
Começar com o termo “O Senhor diz” a meu ver é inapropriado, confuso e perigoso. É pedir para ser entendido como que reivindicando a infalibilidade da revelação. Neste sentido, Abe deveria dizer “Eu sinto que Deus está tocando em meu coração no sentido de que você deveria ir e se tornar um missionário em Moçambique” [2]
Ainda sem o perigo do modo de introdução, um comando como esse parece para algumas pessoas uma ameaça à suficiência da revelação bíblica. O Salmo 119:1 diz “Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do Senhor!”. Para estar sem culpa, tudo que é necessário é “caminhar de acordo com a Lei de Deus”. Nenhum comando ou regras adicionais são necessárias. Para os que pensam assim, a “lei de Deus” dá instruções completas em justiça. Similarmente 2ª Tm 3:16-17 indica que as Escrituras são suficientes “para que o homem de Deus seja equipado para toda boa obra”. Qualquer ordenança que adicione algo à Bíblia, se reivindicar infalibilidade ou não, é ilícita (Dt 4:2).
Em adição, comandos como os de Abe, frequentemente criam problemas práticos excruciantes. Suponham que Abe diga para Bill ir para como missionário para Moçambique, mas Bill não tem intuitivamente qualquer impulso próprio para ir. Bill está preso. Se ele não vai, se sente culpado por desobedecer a palavra do Senhor. Se ele vai, se sente infeliz porque ele realmente não quer ir e teme que aquela não seja verdadeiramente a vontade de Deus.
Contudo, grupos carismáticos tem tido, às vezes, tristes experiências onde pessoas manipuladoras têm usado comandos como esses para forçar uma obediência escrava aos seus caprichos. Tal como vendedores insistentes, pessoas têm usado comandos semelhantes para atingir fins pessoais. Compreensivelmente alguns líderes proibiram essa forma de mensagem totalmente, pois “Não é disso que a profecia trata”, eles dizem.
Certamente é uma prática perigosa, bem como há perigo de infringir a suficiência das Escrituras, cabendo então a nós termos precaução e até certa desconfiança sobre conteúdos extrabíblicos. Por outro lado, aparentemente, comandos extrabíblicos em determinadas circunstâncias podem merecer uma inspeção mais minuciosa.  Em alguns casos não são realmente adições às Escrituras, mas sim aplicação das Escrituras. Eles caem na área que eu chamo de conteúdo aplicado.  Considere, por um momento, aquela ideia de R. C. Sproul “vá por todo o mundo e pregue o Evangelho à toda criatura viva”. A linguagem é similar a de Marcos 16:15.  Problemas de crítica textual com a parte final de Marcos não nos permite afirmar de modo absolutamente certo que Marcos 16:15 é parte dos textos autógrafos, mas a ideia geral é bíblica, como é mostrado também em Mt 28:19. Não foi feita alguma adição estranha ou uma exigência inédita, no entanto nós temos um comando bíblico aplicado a R. C. Sproul. Para termos certeza que essa aplicação está correta, nós temos que ter algumas informações sobre R.C. Sproul, tais como: Ele tem os dons e qualificações espirituais necessárias para se tornar um pregador da Palavra?  Dados alguns conteúdos circunstanciais sobre Sproul, a aplicação é boa.
Em geral, tais aplicações usam comandos bíblicos e informações sobre o mundo. Apenas com algum grau de conhecimento sobre o mundo nós podemos asseverar se aquela aplicação é ou não apropriada.
Às vezes erros humanos podem ser cometidos mesmo quando há disponível um comando bíblico e um conteúdo circunstancial válido. Considere Atos 21:4 “Eles pelo Espírito diziam a Paulo que não subisse a Jerusalém”. Este é um texto difícil. Mas talvez tenha acontecido como se segue. “Por meio do Espírito” os discípulos em Tiro obtiveram a informação sobre o que aconteceria a Paulo em Jerusalém (Observe Atos 20:23: senão o que o Espírito Santo me testifica, de cidade em cidade, dizendo que me esperam prisões e tribulações). Essa informação foi recebida por meio de processos não-discursivos. Os discípulos também estavam familiarizados com os mandamentos bíblicos concernentes à proteção da vida humana (Pv 22:3, etc). Quando eles reuniram as normas bíblicas com a informação sobre o mundo, eles inferiram que Paulo não deveria ir. Mas a inferência estava incorreta por causa do chamado especial de Paulo (Atos 20:22-24; 21:14).
Quando alguém dá um comando pouco usual atualmente, esses comandos podem ser uma combinação de normas bíblicas com conteúdo circunstancial. Por exemplo, o comando “pregue o evangelho” endereçado para R.C. Sproul combina a norma bíblica de Mateus 28:19 com conteúdo circunstancial sobre os dons de Sproul. Às vezes tanto a norma bíblica quanto o conteúdo circunstancial podem vir por meio de processos não-discursivos.  Então a pessoa que emite o comando é incapaz de definir exatamente de onde vem o comando. É simplesmente um comando com origem não-discursiva. Não é infalível, claro, mas ainda é em alguns casos um comando que traz uma aplicação válida de determinada norma bíblica.
Consequentemente há uma inegável possibilidade que comandos válidos possam vir por meios de processos não-discursivos. Mas, conforme já observado, cautela deve ser tomada na avaliação desse comando. O conhecimento de outros, tanto o conhecimento sobre a Bíblia e o conhecimento sobre a situação e pessoas envolvidas, devem ser usadas para julgar qual a resposta apropriada. Deve ser ressaltado que o Senhor deseja serviço de nossos corações (2ª Co 9:7), não obediência escrava de alguém que carrega um fardo opressivo (Mt 11:28-30; 1ª Jo 5:3). Na raiz, o ser de Deus é sempre limpo “Ame o Senhor seu Deus com todo seu coração e toda sua alma e com todo seu entendimento” esse é o maior e mais importante mandamento, e o segundo é algo como “ame seu próximo como a ti mesmo”. Toda a Lei e os Profetas se resumem nesses dois comandos normativos (Mt 22:37-39). O povo precisa aprender a devotar toda sua energia para obedecer a clara vontade do Senhor. E no processo o que é menos claro (por exemplo, ir à Moçambique), fará sentido depois.
Acolhendo os dons espirituais
Retornemos então ao ponto principal. Já foi dito que em nossos dias Deus pode trabalhar por meio de processos discursivos e não-discursivos. No tempo dos apóstolos ambos ocorreram de modo inspirado. Em nosso tempo, o cânon das Escrituras está completo e a inspiração cessou. Processos modernos são falíveis, mas eles são análogos aos processos que ocorreram entre os apóstolos. No entendimento moderno dos dons espirituais, estamos seguindo as pistas daquilo que ocorreu nos tempos apostólicos.
O quê, então, estamos fazendo sobre os dons espirituais da atualidade?  Os dons modernos incluem dons discursivos (ex: dom de ensino) e dons não-discursivos (ex: pessoas que podem dar uma palavra de modo espontâneo [Cl 4:6]). A possibilidade dos dois tipos de dons podem inferidos a partir de uma distribuição análoga dos dons nos tempos dos apóstolos. Ademais, Cristo e o Espírito Santo são a fonte de todos aqueles dons (Ef 4:7,11; cf 1ªCo 12:11). São eles, não nós, que decidem quem usa processos discursivos ou não-discursivos como obra do Espírito Santo.
Em resposta, nós devemos acolher os dons espirituais de todos os tipos, honrá-los e recebê-los (12:14-26). Nós temos especialmente que buscar o amor (1ª Co 13) e aqueles dons que servem para edificar a Igreja (1ª Co 14). Ao mesmo tempo, temos que discriminar cada qual (1ª Ts 5:21-22) e exercer o discernimento, porque manifestações modernas são sempre falíveis. Todas as coisas devem ser avaliadas à luz das Escrituras à qual nada pode ser acrescentada (Dt 4:2; Ap 22:18-19).
Há lições aqui tanto para carismáticos quanto para não-carismáticos. Alguns carismáticos precisam se tornar mais explícitos sobre a falibilidade no sentido de definir apropriadamente o caráter misto dos dons não-discursivos. Eles precisam aprender a avaliar os dons discursivos.  Contudo, indiretamente eles têm dito: “Eu não preciso de você” (1ª Co 12:21) para os dons discursivos porque, supostamente, estes dons são menos espirituais que os não-discursivos. [3]
Em outro sentido, alguns não-carismáticos precisam aprender o valor dos dons não-discursivos. No entanto eles estão prontos a dizer “não preciso de você”, porque em termos de fundamento, supõe-se, é que os dons não-discursivos cessaram com o término do Cânon das Escrituras.  No entanto, o que eles têm mostrado é apenas que os dons não-discursivos inspirados cessaram com o término do cânon.
Nós também precisamos nos tornar mais evidentes onde a analogia é quebrada, a saber, aquilo que diz respeito à crucial distinção entre conteúdo de ensino e conteúdo circunstancial. O conteúdo inspirado na Bíblia é, de acordo com minha definição, todo conteúdo de ensino. Em contraste, nossa moderna configuração lida com o conteúdo de ensino e o conteúdo circunstancial. Consequentemente, não há uma analogia apostólica para nosso moderno conteúdo circunstancial. Para ser claro, os apóstolos e todos mais na Bíblia tiveram que se confrontar com desafios para aplicar os princípios bíblicos gerais à circunstâncias particulares. Mas as aplicações que os apóstolos fizeram em suas próprias vidas foram inspiradas e assim compreende parte da divina norma bíblica. Informação apostolicamente autorizada sobre circunstâncias, no entanto, por mais trivial que possa parecer (2ª Tm 4:13), é divinamente autoritativa e permanentemente instrutiva para a Igreja. A esse respeito, isso pertence ao lado divino, enquanto nossa informação circunstancial moderna pertence ao lado criado sobre a qual a palavra divina é aplicada. A relação entre nosso conteúdo de ensino moderno e o moderno conteúdo circunstancial não é simétrico ou balanceado. No entanto, o conteúdo de ensino moderno é autoritativo  enquanto re-expressa as Escrituras. O conteúdo circunstancial moderno não é eclesiasticamente mais autoritativo, não importa o quão sincero possa ser.
O debate sobre a cessação da profecia
Agora vamos olhar por um momento para um debate emaranhado. Pessoas debatem se “Profecia” no NT e a Igreja Primitiva foi divinamente inspirada e infalível.  Possuía completa autoridade? Richard B. Gaffin Jr. diz que foram inspiradas [4]. Wayne A. Grudem faz um contraponto ao afirmar que não foram [5]. Muitas pessoas acreditam que do resultado desse debate é crucial para o futuro do movimento carismático. Mas atualmente o resultado dos debates faz pouca diferença prática hoje.
Suponha que Gaffin esteja certo. Então a profecia cessou com o término da era apostólica e do cânon das Escrituras. O fenômeno moderno é falível e consequentemente não é idêntico ao fenômeno da profecia do NT. Mas processos não-discursivos como ensino de conteúdo são análogos à profecia, assim como uma pregação moderna é análoga à pregação apostólica. Consequentemente os princípios gerais concernentes aos dons espirituais, como articulado em 1ª Co 12-14 e outros, ainda são aplicáveis. O que os carismáticos chamam de profecia não é realmente a profecia mencionada no NT. Invés disso, é uma analogia falível. É realmente um dom espiritual para falar falivelmente por meio de processos não-discursivos. Em contraste com a pregação que é um dom espiritual para falar falivelmente por meio de processos discursivos.
Processos não-discursivos com conteúdo circunstancial não são, em certo sentido, análogos à profecia bíblica inspirada. Mas podem funcionar positivamente no serviço do Espírito, apenas como conteúdo circunstancial por meio de processos discursivos.
Por outro lado, suponha que Grudem esteja certo. Então a profecia continua. Mas tal profecia é falível. Não é idêntica com a profecia inspirada do AT. É de fato um dom espiritual para falar falivelmente por meio de processos não-discursivos. Se o conteúdo é bíblico, sua autoridade deriva da Bíblia. Se o conteúdo é circunstancial, não é uma adição à Bíblia (não divinamente autoritativa). Consequentemente é apenas informação e não tem qualquer autoridade. Consequentemente, Grudem termina substancialmente com  a mesma conclusão prática de Gaffin.
Assim, não há nenhuma necessidade para Gaffin e Grudem discordarem sobre o fenômeno moderno. Eles discordam apenas sobre o rótulo que devem dar ao fenômeno (“não-profecia” versus “profecia”) e sobre se o fenômeno do NT é idêntico ou meramente análogo ao fenômeno moderno.
Tanto Gaffin e Grudem já têm conhecimento da falibilidade do fenômeno moderno. Gaffin precisa apenas dar um passo adiante para integrar o fenômeno moderno na teologia dos dons espirituais. Dado esse passo de integração teológica, nós encontraremos que há uma justificativa analógica para o uso desses dons na Igreja hoje.
Grudem, por outro lado, precisa apenas clarificar o status da profecia. Profecia, ele diz, é falível, mas ainda revelatória. Ainda deriva de Deus e ainda é necessária para o bem estar da Igreja. Gaffin e muitos outros encontram algum tipo de dificuldade com esse tipo de descrição. Como algo pode ser revelatório e não competir com a suficiência das Escrituras? Eu explico como, em parte distinguindo conteúdo de ensino de conteúdo circunstancial. Conteúdo de ensino não pode adicionar nada às Escrituras, mas apenas reproduzir aquilo que já está nas Escrituras. Conteúdo circunstancial tem ao mesmo tempo o status de uma chamada de longa distância, que não reivindica qualquer autoridade especial. Portanto é óbvio que nenhum tipo de conteúdo ameaça a suficiência das Escrituras.
Se carismáticos e não-carismáticos pudessem concordar nestes pontos, eu penso que o debate dos dons espirituais modernos estaria largamente ultrapassado.  Mas há ajustes práticos. Pessoas que valorizam processos não-discursivos têm tendência a migrar para círculos carismáticos, onde dons não-discursivos são priorizados. Pessoas que valorizam dons discursivos tem migrado para círculos não-carismáticos. Cada grupo tem tendência a priorizar pessoas do seu próprio tipo.  Nós todos precisamos aprender novamente de 1ª Co 12  a importância de todos os dons, incluindo aqueles que ainda temos que nos acostumar.
Nós não podemos ditar antecipadamente que os dons discursivos ou não-discursivos devem sempre ser dominantes, ou que devem ter características excepcionais em toda comunidade cristã. O Senhor dá “os dons para cada um conforme Ele determina”, não como nós determinamos (1ª Co 12:11). Por outro lado, nós podemos estar confiantes que o Senhor regerá e guiará sua Igreja por meio das Escrituras completas. Ele não adiciona nenhuma reivindicação divinamente autoritativa. Consequentemente a natural proeminência pertence ao conteúdo de ensino, cuja autoridade deriva das Escrituras (Ef 4:11)…
Notas:
[1] R. C. Sproul, “Striking a Chord in the Heart of the Believer,” Table Talk 14/11 (Novembro 1990), p. 13.
[2] cf. Grudem, Gifts, p. 260.
[3] Tais lições estão incluídas no teor do que é dito em Gifts. pp. 253-263.
[4] Assim, por exemplo, Gaffin cautelosamente abre uma porta para os modernos dons não-discursivos emPerspectives on the Pentecost, p. 120: “Muitas vezes, também, o que é visto como profecia é na verdade um espontâneo trabalho do Espírito na aplicação da Escritura, uma compreensão mais ou menos repentina producente acerca do que o ensino bíblico tem sobre uma determinada situação ou problema. Todos os cristãos precisam estar abertos a esses trabalhos mais espontâneos do Espírito “. Gaffin fala aqui daquilo que eu classifico como conteúdo de ensino obtido através de processos não-discursivos. Robertson permite fenômenos semelhantes em A Palavra Final, p. 84.
[5] Gaffin, Perspectives.
[6] Grudem, Gifts.
Título original: Modern Spiritual Gifts as Analogous to Apostolic Gifts: Affirming Extraordinary Works of the Spirit Within Cessationist Theology.
Referência:
http://frame-poythress.org/modern-spiritual-gifts-as-analogous-to-apostolic-gifts-affirming-extraordinary-works-of-the-spirit-within-cessationist-theology/
Tradução: Thiago Holanda (Versão em português disponibilizada em: http://teologiacarismatica.com.br/).

Os dons espirituais da atualidade como análogos aos dons apostólicos: a afirmação da obra extraordinária do Espírito Santo dentro da teologia cessacionista: Parte II


Vern Sheridan Poythress

VI. CONTEÚDO CIRCUNSTANCIAL RECEBIDO POR MEIO DE PROCESSOS NÃO-DISCURSIVOS
Há muito temos discutido o conteúdo do ensino. Vamos agora considerar o segundo tipo de conteúdo – a saber, o conteúdo circunstancial. Nesta categoria nós temos declarações como as que seguem. Numa igreja americana alguém diz: “eu sinto que nossa igreja irmã em Xangai está em luta espiritual e passando por ataques”. Certa vez, C.H. Spurgeon apontou na direção da galeria da igreja dele e disse “jovem rapaz, as luvas que você tem em seu bolso, você não pagou por elas” [1]. Em uma outra ocasião, Spurgeon disse “há um homem que é sapateiro e que mantém sua sapataria aberta aos domingos; ele a abriu no último Sabbath pela manhã; pagaram-lhe nove pences por um serviço [2] e lucrou quatro pences. Sua alma foi vendida a Satanás por quatro pences”. Uma mulher na Suíça teve uma visão de um auditório em Essex onde Os Guinness estava prestes a palestrar e onde uma garota estrangeira estava prestes a impedir o encontro [3]. Todos são casos de conteúdo circunstancia obtidos por meio de processos não-discursivos.
Indubitavelmente esse tipo de conteúdo causa maiores dificuldades. No entanto, elas são consideravelmente reduzidas se atentarmos ao fato de que a informação obtida não é muito diferente em seu conteúdo daquelas obtidas por meio de canais óbvios. Por exemplo, em princípio a igreja em Xangai podia estar habilitada para fazer chamadas de longa distância para irmãos e irmãs dos Estados Unidos. Spurgeon podia ter obtido a informação (mas não foi o que ocorreu) da pessoa que havia roubado o par de luvas ou daquele que abriu sua loja no domingo. Os Guinness poderia ter efetuado uma chamada de longa distância para aquela mulher da Suíça. O tipo de informação envolvida não é impressionante. O impressionante é que a informação veio por meio de processos não-discursivos. Não houve qualquer chamada de longa distância ou qualquer outra comunicação cientificamente analisável pela qual a informação chegou ao receptor. Tais informações como um processo espiritual operando no nível da crença ordinária, ou concebida no nível dos dons espirituais. Se o cânon está completo, não há caminho pelo qual essa informação pertença ao nível 1 ou nível 2. Ademais, não há nenhuma razão prática pela qual a informação precisa pertencer ao nível 1 ou nível 2. O ponto em especial é que o receptor tenha recebido a informação, não que a informação tenha um status especial. Consequentemente, eu arguiria que a informação deste tipo pertence à mesma ampla categoria daquela informação recebida por um telefonema de longa distância, pelo jornal novo ou pela observação direta. É simplesmente uma informação sobre o mundo, não mais, não menos. Em princípio, não é uma informação que desafie as Escrituras mais do que a informação sobre se escovei ou não meus dentes após o café da manhã [4].
Eu penso que pessoas que têm problemas com processos não-discursivos têm problemas com a obviedade. Nos casos envolvendo processos não-discursivos, não houve nenhuma ligação de longa-distância. Assim, de modo lógico, a pessoa em questão deve ter recebido a informação diretamente de Deus. Consequentemente a informação deve ter sido diretamente inspirada por Deus e deve carregar a completa autoridade divina. Esta última conclusão cria a dificuldade mais dolorosa porque se a conclusão é verdadeira, a informação recebida competiria com a autoridade da Bíblia. Cessacionistas sentem que devem rejeitar completamente esse tipo de processo para proteger a suficiência e exclusividade da autoridade bíblica; Os não-cessacionistas, em contraste, sentem que devem se submeter a tais informações de modo acrítico, contrariando o caráter falível das fontes modernas.
Ambos lados precisam se acalmar. O erro crucial está em confundir o envolvimento de Deus com a falta de envolvimento da criatura humana e pecado humano, e, além disso, confundir o envolvimento de Deus com a plena autoridade divina do resultado. Deus, em certo sentido, está diretamente envolvido no crescimento da grama e do vento que sopra: “Fazes crescer erva para os animais” (Sl 104:14), no entanto o crescimento da erva não é inspirado. Por conseguinte, ainda que as pessoas não estejam conscientes das fontes dos seus pensamentos, suas palavras ou visões, as fontes estão ali em consequência de aspectos de suas personalidades. Lideranças nos círculos carismáticos são bem cônscios de que muitas pessoas podem falar em línguas ou entregar profecias na carne, ou seja, eles sabem que mesmo os processos não-discursivos são psicologicamente motivados. [5]
Sonhos são um bom exemplo.  A maioria dos ocidentais enxergam hoje a maioria dos sonhos basicamente como um produto do inconsciente ou de uma imaginação descontrolada. Presumivelmente houve muitos sonhos mundanos, ordinários nos tempos do Novo Testamento tal como hoje. Contudo alguns sonhos foram revelatórios (Mt 1:20-24). Atos 10.10 sugere que Deus pode se utilizar de uma experiência humana normal, tal como a fome funcionando como um meio pelo qual ele traz um sonho ou visão apropriados.
Analogicamente, nos tempos modernos, nós podemos postular que um sonho pode ser simultaneamente um produto de certas predisposições psicológicas pessoais e um meio usado por Deus para trazer uma atenção pessoal sobre um tipo de conteúdo circunstancial.  Por exemplo, suponha que apenas antes de ir para a cama, Sally e seu marido conversem sobre sua tia Emma que está dirigindo a uma considerável distância para um encontro especial naquela noite. Na alta madrugada então, Sally tem um sonho no qual a tia Emma morre repentinamente em um acidente de carro. Sally então acorda e decide orar pela tia e por aqueles que são próximos. Depois, volta a dormir. No dia seguinte recebe a notícia de que Emma se envolveu em um acidente na mesma noite em que Sally orou. O carro ficou totalmente destruído, mas felizmente tia Emma não ficou ferida. O sonho não é infalível ou não adiciona conteúdo à Bíblia. No entanto, foi uma experiência psicológica falível que Deus usou para trazer Sally à oração em um momento que era crucial.
O crucial exemplo de Lucas e do livro de Apocalipse retorna para nos instruir. Não há intrinsecamente uma espiritualidade superior que pertença aos processos discursivos (Lucas) ou processos não discursivos (Apocalipse). Quando o Espírito Santo produziu o cânon, ambos os processos foram inspirados. No entanto, em outras situações, ambos os processos foram não-inspirados. Eles podem ter sido também influenciados por demônios (2ª Tm 2.24-26; Lc 8.32; At 16.17-18). Ambos podem ser falíveis e ter um caráter confuso, de acordo com a falibilidade geral do ser humano. Uma vez que a inspiração cessou com o encerramento do cânon, fontes modernas são sempre falíveis.
Suponha então aceitarmos que os processos não-discursivos são todos falíveis. Eles não são em princípio uma ameaça à autoridade única da Bíblia, no entanto algumas pessoas ainda podem ter problemas em entender sobre como lidar com eles. Como então validar o conteúdo? Se nós não damos qualquer credencial aos processos não-discursivos, na prática não o estaríamos recebendo de modo não-crítico porque eles não podem ser diretamente checados pelas Escrituras?
Nós temos visto que quando o conteúdo é conteúdo de ensino ou doutrinariamente orientado, os ouvintes podem verificar o conteúdo em comparação com as Escrituras. Mas como um conteúdo circunstancial pode ser verificado? Suponha que alguém reivindique por meio de processos não-discursivos que certo homem não pagou por suas luvas. Devemos crer ou não na reivindicação?
Situações como essas não são tão difíceis como podemos supor. Muitas vezes não importa aquilo em que acreditamos. Nós somos livres para permanecer duvidando, e somos bastante aconselhados a permanecer em dúvida em virtude da falibilidade de todo o processo não-discursivo moderno. Nos casos da vida de Spurgeon, a congregação recebeu uma ilustração de uma lição geral sobre suas necessidades e pecados particulares, ou seja, uma ilustração dirigida por Deus. Se Spurgeon está certo e há um rapaz que roubou as luvas, o rapaz sabe disso e recebe a mensagem de modo muito particular. Mas se Spurgeon está errado (e de fato pode estar em decorrência de sua falibilidade), então ninguém recebe a mensagem de modo particular, mas permanece uma lição geral para toda a congregação. Assim, nós podemos orar por uma situação sem saber com certeza se ela é tal como pensamos ser; podemos orar por um jovem rapaz sabendo que Deus sabe qual a real situação, e, podemos orar por igrejas irmãs em Xangai.
Claro que o perigo de abuso nunca está distante. Spurgeon falou para uma grande congregação, então seria presumivelmente impossível para as pessoas saberem exatamente quem Spurgeon tinha em mente. Ele podia até não saber quem era o indivíduo. Mas se o orador estivesse reivindicando que uma pessoa em específico pecou, o resultado poderia ser uma calúnia e isso é claramente antibíblico (Pv 10:18; Cl 3:8; 1ª Pe 2:1, etc). O orador então necessitaria ser repreendido.
Algumas pessoas talvez sintam certo desconforto sobre essa incerteza. Talvez elas tenham as razões que seguem. Quando nós recebemos uma chamada de longa distância de Xangai, nós sabemos o que está acontecendo lá. Mas quando nós sabemos por processos não-discursivos, não podemos ter certeza de que aquilo está realmente acontecendo. Como podemos responder a isso?
Na atualidade nós estamos acostumados em muitos tipos de situações a responder situações duvidosas. Além do mais, uma chamada de longa distância não é infalível.  Pode haver estática na linha.  A pessoa do outro lado da linha pode estar confusa acerca da situação que está acontecendo em Xangai ou pode estar mentindo sobre a situação; talvez esteja insano; ou talvez a voz que estamos ouvindo seja uma voz digitalmente alterada. Apesar destes problemas de falibilidade, é possível responder propriamente a uma chamada de longa distância.
Considere por um outro ângulo. Se a pessoa do outro lado de uma chamada telefônica tem mostrado ser duvidosa no passado, nós desconfiamos daquilo que ela diz em certo nível. De igual modo, se o processo não-discursivo de alguém não tem sido confiável, nós desconfiamos do que ele diz na proporção da sua confiabilidade. Se nós não temos nenhuma experiência com os processos não-discursivos dessa pessoa, nós desconfiamos mais ou menos na mesma proporção de qualquer estranho aparentemente bem-intencionado. Muito dessa prática de estimativa é muito comum nas relações humanas. Nós não estamos tratando com algo que não tenha algum precedente na experiência humana.
VII. PREDIÇÕES
Há ainda alguns tipos de conteúdo circunstancial que precisa de atenção especial. Um destes é o da área de predição. O que fazer quando alguém prediz o tempo em que Jesus voltará? Então seguramente nós podemos ignorar a predição porque contradiz as Escrituras (Mc 13.32-37; At 1.7). Nós devemos admoestar a pessoa que faz a previsão, usando nossas bases de advertências bíblicas contra a definição de datas para o retorno de Cristo.
Peguemos agora um outro exemplo. E se alguém disser que a Califórnia será submersa no mar em uma data tal? Se vivemos na Califórnia, deveríamos preparar nossas malas e ir embora? A primeira regra em tais situações deve ser, como sempre, lembrar que toda predição humana é falível. O que devemos fazer com a predição de possibilidades ou previsões econômicas? Nós devemos prestar alguma atenção nelas, mas nós sabemos que elas frequentemente erram ou erram em parte e acertam em parte.
Algumas pessoas talvez objetem que as predições e predições econômicas não são um paralelo real porque eles são discursivos ao invés de não-discursivos. Certamente as pessoas que fazem previsões o fazem por inferência, mas as pessoas que julgam a credibilidade da predição quase nunca conhecem os detalhes da meteorologia moderna ou de teorias econômicas, nem conhecem os detalhes dos dados sobre os quais as teorias operam a fim de produzir uma previsão específica. Na prática atual, nós julgamos a credibilidade por meios humanos comuns. Aquele tipo de previsão se provou confiável no passado? A pessoa tem se mostrado uma pessoa confiável nessa área? Essa previsão é o tipo de coisa provável que Deus faria?
Nossa conclusão geral permanece a mesma. Indubitavelmente o Espírito Santo pode trabalhar por meio de processos não-discursivos para produzir predições humanas. Ele também pode trabalhar por meio de processos discursivos para produzir predições humanas. Um não é intrinsecamente mais espiritual que o outro e nenhum é intrinsecamente mais falível que o outro. Nenhum tipo de predição é uma palavra divina extra canônica que demande uma crença submissa, mas é simplesmente uma informação putativa sobre circunstâncias futuras, para ser avaliada como nós avaliaríamos qualquer outra predição.
Uma vez que entendemos que predições baseadas em processos não-discursivos não são uma categoria especial divina e são tão falíveis como as predições baseadas em processos discursivos, nós estamos prontos para a prática da sanidade. Assim, não podemos rejeitar totalmente nem aceitar de forma crédula essas predições.
Notas:
[1]  E. W. Bacon , Spurgeon: Heir of the Puritans. Grand Rapids: Eerdmans, 1968, p. 156.
[2]  Ibid
[3]  O. Guinness, The Dust of Death. Downers Grove: InterVarsity, 1973, p. 299.
[4] Juntamente com muitos outros, Robertson está devidamente muito preocupado com quaisquer palavrasextra afirmando ser “uma palavra vinda do Senhor”, ou afirmando especificar “sua vontade para a vida deles” (Final Word 88–95, esp. p. 89). Ele realça quão instáveis, confusas, opressoras e circunstanciais podem se tornar tais reivindicações. Mas a minha distinção entre conteúdo de ensino e conteúdo circunstancial aborda o problema. Conteúdo de ensino ou reitera as Escrituras ou é inválido) (assim não adiciona à Escritura). Conteúdo circunstancial propriamente compreendido, não é de todo “uma palavra vinda do Senhor”, no sentido de ser uma instrução sobre sua vontade, mas é simplesmente informação circunstancial. Se eu anuncio que eu escovei meus dentes não estou assim proclamando uma “palavra vinda do Senhor” expressando sua vontade (preceptiva).
[5] Veja, por exemplo, C. Brumback, What Meaneth This? (Springfield: Gospel Publishing House, 1947) 259; K. McDonnell, Charismatic Renewal and the Churches. New York: Seabury, 1976, pp. 145–146.
Título original: Modern Spiritual Gifts as Analogous to Apostolic Gifts: Affirming Extraordinary Works of the Spirit Within Cessationist Theology.
Referência:
http://frame-poythress.org/modern-spiritual-gifts-as-analogous-to-apostolic-gifts-affirming-extraordinary-works-of-the-spirit-within-cessationist-theology/
Tradução: Renan Moreira (Versão em português disponibilizada em: http://teologiacarismatica.com.br/).

Os dons espirituais da atualidade como análogos aos dons apostólicos: a afirmação da obra extraordinária do Espírito Santo dentro da teologia cessacionista: Parte I

Vern Sheridan Poythress
Eu sustento que os modernos dons espirituais são análogos, mas não idênticos, aos dons divinamente autoritativos exercidos pelos apóstolos. Uma vez que inexiste uma identificação estritiva, o ensino apostólico e o cânon bíblico têm uma autoridade divina absolutamente exclusiva. Por outro lado, uma vez que há analogia, os dons espirituais em sua moderna manifestação ainda são genuínos e úteis para a igreja. Portanto há um meio termo entre a aprovação e a rejeição dos modernos dons carismáticos.
CRISTOCENTRICIDADE DOS DONS
Para desenvolver este ponto de vista precisamos fazer uma série de distinções cruciais. Em primeiro lugar precisamos de um panorama bíblico acerca do pensamento sobre os dons do Espírito Santo.
O próprio Novo Testamento nos fornece recursos para uma teologia dos dons espirituais. Uma passagem chave é encontrada em Efésios 4:7-11. Jesus Cristo é o cabeça da Igreja e o distribuidor de todos os dons do Espírito (v. 11). Ele distribui dons da plenitude que há nEle, porque Ele triunfou (v. 8) e preenche todas as coisas (v. 10). Atos 2:33 suplementa esta imagem pelos dizeres  de que Cristo “recebeu do Pai a promessa do Espírito Santo” como um prelúdio do derramamento do Espírito na Igreja. Da plenitude do Espírito de Cristo nós recebemos a medida “como Cristo a repartiu” (Ef 4:7).
Essas reflexões, naturalmente nos levam à conclusão de que nosso ministério no Espírito é análogo, bem como subordinado, ao ministério de Cristo. Por exemplo, Cristo é o grande profeta (At 3:22-26). Por meio do derramar do Espírito em Pentecostes nos tornamos profetas subordinados (2:17-18). Cristo é o Pastor chefe (1ª Pe 5:4), o governante da Igreja.  Por meio do Espírito, ele indicou pastores subordinados (5:1-3; At 20:28) e concedeu dons para governar e administrar o rebanho (1ª Co 12:28; Ef 4:11 [“pastores”]). Cristo veio para servir e dar sua vida como resgate de muitos (Mt 20:28). Ele também concedeu dons de serviço (Rm 12:7-8) e nos chamou para darmos “nossas vidas em favor de nossos amigos” (1ª Jo 3:16).
A obra de Cristo por nós pode ser convenientemente classificada sob a tradicional classificação tridimensional: profeta, rei e sacerdote [1]. Cristo nos fala (profeta), Ele governa sobre nós (rei) e Ele dá sua vida em serviço por nós (sacerdote). Todas as três funções são exercidas concomitantemente em Hebreus 1:1-3. Quando estamos unidos com Cristo, somos transformados em sua imagem e semelhança (2ª Co 2:3-18; Rm 8:29; Ef 4:24). Nós nos tornamos profetas quando falamos sua Palavra para outros (Cl 3:16). Tornamos-nos reis quando exercitamos autoridade em Seu nome sobre todas as áreas pelas quais somos responsáveis (Ef 2:6; 6:4). E nos tornamos sacerdotes quando servimos aos outros (1ª Jo 3:16).
As relevantes passagens escriturísticas nos mostram que estas coisas são a verdade daqueles que creem em Cristo. Contudo, nem todos são igualmente dotados em todas as áreas (Ef 4:7).  Onde os dons da fala são fortes, pessoas  se tornam reconhecidos professores (4:11). Onde dons de governo são fortes, pessoas são reconhecidas como presbíteros ou pastores (1ª Pe 5:1-4). Onde os dons de serviço são fortes, pessoas são reconhecidas como servas ou doadoras de misericórdia. Alguns têm sugerido que talvez pudéssemos correlacionar este serviço, de modo particular, com o ministério do diaconato (que é apoiado pelo fato de que a palavra diakonia significa “serviço”)
As três categorias de dons proféticos, de governo e de sacerdócio não estão perfeitamente separadas umas das outras. Tanto na vida de Cristo quanto na vida do seu povo há combinações típicas. Por exemplo, pastorear envolve a alimentação das ovelhas por meio da palavra de Cristo (uma função profética) e a liderança e proteção destas (uma função de reinado). As fronteiras entre essas áreas são um tanto confusa, mas ainda assim podemos reconhecer aqui focos ou ênfases absolutamente distintas.
Todos os dons mencionados em Romanos 12, 1ª Coríntios 12 e Efésios 4 podem ser classificados grosseiramentena categoria de profético, reinado ou sacerdotal. Por exemplo, dons de conhecimento e sabedoria são proféticos, enquanto os dons de administração, operação de milagres e curas são dons de reinado.  Mas alguns dons podem ser facilmente classificados de um outro modo. Por exemplo, o dom de curar pode ser visto como um domsacerdotal, uma vez que é um exercício de misericórdia em direção a quem foi curado. Ultimamente, as funções proféticas, de reinado, e sacerdotais, podem ser expandidas para perspectivas de toda a vida do povo de Deus. Então não deveríamos nos conturbar diante da aparente sobreposição. Ainda assim essa classificação é bem útil para nos lembrar de nossa relação com a obra de Cristo  e relembrar que nenhuma lista dos dons do Novo Testamento intentou ser exaustiva.
UMA PIRÂMIDE DOS DONS
Porque os dons têm variadas funções e intensidades de manifestação, o NT reconhece níveis de funções para os dons proféticos, de reino e sacerdotais. Quais são eles?

Primeiro e mais importante, há uma superdotação messiânica (nível 1). Cristo sozinho tem a plenitude do Espírito para equipá-lo para as finalidades de profeta, rei e sacerdote, de modo definitivo.
Em segundo lugar, há superdotações apostólicas ou fundacionais (nível 2). Cristo aponta os apóstolos como testemunhas (Atos 1:21-22). Na base do que eles viram e ouviram diretamente, bem como com base na obra de inspiração do Espírito Santo, eles puderam testificar de maneira autoritativa para todas as eras acerca daquilo que Cristo realizou. Em seu caráter de testemunhas verbais, eles têm um papel profético não repetível. Os apóstolos estão intimamente associados aos “homens apostólicos” como Marcos, Lucas e Judas que produziram o cânon do NT.
De modo similar, os apóstolos tomaram decisões fundacionais concernentes à ordem ou pastoreio da Igreja do Novo Testamento. Eles fizeram isso em meio às primeiras crises (Atos 6; 8; 10-11; 15;20). Assim eles tiveram um papel de governo que não é repetível. Os apóstolos apontaram os primeiros diáconos e estabeleceram o ministério do serviço e de misericórdia (6:1-7). Em todos esses aspectos, o papel apostólico não é repetível.
Em terceiro lugar, nós temos o nível de dons proeminentes, e que são dons repetíveis (nível 3). Pessoas podem ser oficialmente reconhecidas pela Igreja quando manifestam intensos dons de ensino, governo e de misericórdia. Tradicionalmente a eclesiologia Reformada denomina esse nível de “ofícios especiais”. Inclui os mestres, presbíteros e diáconos na Igreja.
Por fim, nós temos o nível do envolvimento de todo aquele que crê (nível 4). Como a Escritura mostra, todo crente unido com Cristo é feito um profeta, um rei e um sacerdote, em um sentido amplo.
A distinção entre dons com plena autoridade e dons subordinados (não inspirados) está clara agora. Jesus Cristo é Deus (Jo 1:1; 20:28) e Senhor da Igreja (Ef 5:24). Sua obra tem total autoridade divina. Os apóstolos e homens apostólicos foram comissionados por Cristo para serem testemunhas de sua autoridade. Consequentemente, suas palavras e ações oficiais têm divina autoridade (ver 1ª Co 14:37; 1ª Ts 2:13). Em particular, as palavras apostólicas no exercício de seu ofícios são inspiradas no sentido técnico. Palavras inspiradas são palavras ditas pelo próprio Deus, ou seja, palavra sopradas por Deus (2ª Tm 3:16) e consequentemente elas carregam autoridade divina sem quaisquer ressalvas.
O Espírito Santo também trabalha por um caminho subsidiário dando dons de ensino e comunicando dons aos pastores, mestres e cristãos comuns (Ef 4:1; Cl 4:6). As palavras dadas por essas pessoas, portanto, não são inspiradas, isto é, essas falas não são identicamente ditas por Deus de tal modo que carregue uma divina autoridade e perfeição sem qualquer ressalva.
Todavia, esses discursos podem ser inspirados no sentido popular da palavra. Nós reconhecemos que o Espírito Santo está presente. Agradecemos a Deus pelos dons que são exercidos e sabemos que quando adequadamente exercidos, eles vem do Poder do Espírito Santo. Contudo os resultados são sempre falíveis e devem ser verificados pelo padrão da Bíblia. A necessidade de testes das obras está implícito na própria finalidade da revelação em Cristo (Hb 1:1-3), à característica fundacional do ensinamento dos apóstolos (Ef 2:20) e o fato de que o cânon das Escrituras está completo. Tratam-se dos melhores representantes daquilo que é aceito como ponto de vista dos carismáticos e dos não-carismáticos [3].
CONSCIÊNCIA DAS BASES PARA PALAVRAS E AÇÃO
Nós também podemos esclarecer o funcionamento dos dons do Espírito Santo de muitas outras maneiras que quebrem as classificações que já foram estabelecidas. Por exemplo, podemos distinguir entre dons  exercidos em direção a Deus, em direção a outros cristãos e em direção ao mundo (fora da comunidade cristã) [4]. Para meus propósitos, é conveniente introduzir uma distinção que foque na consciência das pessoas de uma base para suas ideias ou ações.
Em primeiro lugar, às vezes as pessoas podem, conscientemente, derivar suas idéias para suas ações de uma passagem particular da Bíblia. Por exemplo, um professor pregando um sermão expositivo conscientemente baseia o seu sermão em uma passagem particular da Bíblia. Um ancião aconselhando uma pessoa jovem tentado à embriaguez, conscientemente dará seu conselho com base em passagens que advertem contra a embriaguez. Um diácono consolando alguém que passou por uma tragédia pessoal, terá em mente de maneira muito clara, o texto de Romanos 12:15. Permita-me chamar esse tipo de exercício de dom de um processo discursivo do dom. As condutas são inferidas de uma ou mais passagens da Bíblia.
Em segundo lugar, às vezes pessoas podem atuar com base em palpites, sensações ou intuições. Eles sentem que deveriam dizer algo de modo particular.  Eles talvez vejam uma situação e reajam de modo espontâneo.  Ou talvez eles tenham uma visão e audição especiais. No entanto, nestes casos eles não têm consciência de uma passagem particular da Bíblia ou um conjunto de passagem que forme a base de sua experiência. A experiência deles jorra de um impulso pessoal que não pode ser analisado de forma mais profundamente objetiva. Chamemos tais instâncias de processos não-discursivos.
Em terceiro lugar, pessoas podem atuar com base em uma consciência parcial das bases para ação. Por exemplo, eles comparam sua própria situação com algum modelo situacional da Bíblia. Intuitivamente sentem que aquela situação é paralela à situação bíblica, mas sem estarem conscientes de todos os fatores relevantes para julgar a natureza da comparação. Tais processos são parcialmente discursivos. Nós podemos categorizá-los como um mix de processos ou processo de discernimento criativo. Muitas pessoas em diversas situações têm se envolvido neste terceiro tipo de processo que é o mais comum. Contudo, por questões de simplicidade, nós focaremos de maneira abrangente em processos de mais de um lado: nomeado, discursivo e não-discursivo.
Todos os três rótulos acima são intencionados para descrever, não avaliar, ou seja, servem para apontar de forma descritiva aquilo que várias pessoas fazem, sem contudo aprovar ou reprovar tais práticas.
Nós podemos dar exemplos do NT de todas os três tipos de processos. A maior parte das pregações apostólicas envolveram processos de discurso. “E, havendo-lhe eles assinalado um dia, muitos foram ter com ele [Paulo] à pousada, aos quais declarava com bom testemunho o reino de Deus, e procurava persuadi-los à fé em Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas, desde a manhã até à tarde. E alguns criam no que se dizia; mas outros não criam” (:At 28:23-24). Paulo baseou-se na Lei de Moisés e nos Profetas, o que mostra um processo discursivo. Similarmente, os sermões apostólicos em Atos apelaram para textos específicos do Antigo Testamento e se juntou argumentos a eles.
Neste sentido, os apóstolos se esforçaram para persuadir seus ouvintes. Pessoas criam neles não meramente porque eles reivindicavam ter autoridade divina, mas também porque pessoas “examinaram as Escrituras todos os dias para ver se o que Paulo dizia era verdade” (At 17:11)
Em segundo lugar, as visões em Apocalipse e outros lugares ilustram um processo não-discursivo. João teve visões, ouviu vozes e registrou aquilo que ele viu e ouviu (Ap 22:8).
Por fim, uma possível instância de processos mixados, ou discernimento-criativo, é encontrado em At 15. Os apóstolos e presbíteros enfrentaram criativamente um novo problema de controvérsia por meio dos ensinos explícitos das Escrituras (At 15:16-18) e parcialmente discernindo uma analogia entre a questão geral e o incidente crucial com Pedro (15:7-11).
As fronteiras entre estes três tipos de processos são obviamente fluidas. A consciência da base para uma ação é uma questão de grau. Uns podem estar mais ou menos conscientes de uns poucos ou muitos dos elementos que contribuem para uma ação.
No caso dos exemplos apostólicos, a relevância discursiva e não-discursiva dos processos são inspirados e divinamente autoritativos. Por outro lado, em outros casos os processos não são inspirados. De fato, eles podematé mesmo ser demoníacos. Demônios usaram processos discursivos em Mt 4:6; 2ª Tm 2:25-26 e processos não-discursivos em Lc 4:34; Ez 13:7; 12:24. Ainda em outros casos, os processos discursivos e não-discursivos operam no curso normal da experiência humana. Por exemplo, processos discursivos funcionaram no argumento de Abigail em 1ª Sm 25:28-31. Processos não-discursivos dominam quando Davi se entrega à aflição (2ª Sm 19:4) até que Joabe o chama para cumprir seus deveres (19:5-8). Em geral não há razões para crer que processos discursivos ou não-discursivos são inatamente superiores. Ambos podem ser inspirados, no caso dos exemplos apostólicos, mas ambos podem ser não-inspirados também.
Como podemos ajustar o cristianismo moderno a este quadro?  Alguns apontamentos sugerem que deveríamos pensar nos dons do Espírito Santo por analogia com os dons exercidos pelos apóstolos [5]. Consequentemente, em princípio, há uma sala para os dons que funcionam com processos discursivos, não-discursivos e processos mixados. Exemplos modernos confirmam essa inferência. Algumas pessoas são muito boas construindo argumentos explícitos à partir da Bíblia. Esses dons usam processos discursivos. Outros, por meio de longos anos de estudo e digestão da Bíblia, e por meio da obra do Espírito Santo que trabalha o conhecimento da verdade no coração deles, sabem o que é certo – mas sem estar habilitado no momento para citar um verso particular que justifique sua conclusão. Os dons deles envolve um processo não-discursivo. Outros, claro, podem tipicamente estar conscientes de alguma fonte não-biblica para sua ação.
Essa diversidade de processos abraça, em particular, a área dos dons verbais de conhecimento e fala – que são proféticos, se opondo aos dons de reinado e os dons de sacerdócio. Algumas pessoas sabem e falam primariamente com base em razões explícitas extraídas de passagens da Bíblia. Outros sabem e falam com base em seus senso intuitivo aquilo que está de acordo com o evangelho.
Vamos considerar alguns exemplos. No nível 2, a pregação apostólica envolve predominantemente processos discursivos. Lucas escreveu o Evangelho que leva seu nome usando processos discursivos. Apocalipse nos dá um exemplo de processos não-discursivos.[6]
O que ocorre nos tempos modernos no nível 3 e 4? Processos discursivos incluem a moderna pregação, o estudo bíblico informal e o ensino. Processos não-discursivos inclui instâncias onde ideias bíblicas ou versos vêm espontaneamente à mente, mas sem que o recebedor saiba de onde e como vieram. Às vezes ocorrem  situações impressionantes. Em um sonho ou uma visão, uma pessoa vê uma mulher em um simples vestido branco. Ela está falando em uma área lamacenta. Um pouco de lama respinga no seu vestido. Ela vem até o portão de um palácio e começa a chorar de vergonha. Um homem vem até ela e lhe dá um glorioso vestido brilhante e então ela entra no palácio com alegria. Ou então, um homem tem um sonho no qual um anjo está escrevendo em um livro. Na parte superior do livro tem o nome do próprio homem. Abaixo de seu nome está uma lista com todas as coisas más que ele já fez e todos os pensamentos que teve.  Um homem aparece com um rosto brilhante e as palmas das mãos gotejando sangue.  Esse homem estende as mãos sobre o livro. Uma voz fala para o anjo ler o que está naquela página, mas o anjo responde “Eu não posso ler, porque está coberto com sangue”.
É a genuína pregação apostólica análoga à moderna pregação? Certamente a pregação apostólica é inspirada e única. A pregação moderna não adiciona nada à pregação apostólica, mas é derivada desta.  Consequentemente pode ser que hesitemos em chamá-las de análogas. No entanto,  de algum modo,  inequivocamente, elas são sim análogas. Pregadores e comentaristas têm sempre estado dispostos a extrair lições dos exemplos dos apóstolos e até mesmo de Jesus Cristo, muito embora estes sejam únicos.
De modo similar, nós podemos questionar se Apocalipse é genuinamente análogo às modernas visões ou sonhos. A resposta  é similar àquela que podemos pensar no que concerne à pregação. Apocalipse é inspirado e único. As modernas impressões ou visões, para serem válidas, não devem adicionar à Bíblia, mas ser completamente derivadas desta. Este caráter derivativo é, de fato, evidente nas duas situações acima, na história da roupa enlameada e do livro manchado. Ambos contém ensinamentos bíblicos sobre perdão e justiça em Cristo e ambos usam temas imaginários derivados das Escrituras. O primeiro é mais geral, enquanto o segundo aplica a verdade da justificação para uma pessoa em específico. O segundo vai além da Bíblia apenas na aplicação particular e consequentemente todos podem reconhecer a legitimidade dessa mensagem “O que as pessoas chamam de ‘visão’ atualmente pode estar sendo um mover do Espírito Santo para aplicar a verdade das Escrituras em sua vida”[7]
De fato, em contextos de um sermão estamos confortáveis com o uso de textos por analogia. A visão de Isaías 6, única em seu conteúdo, se torna base para lições sobre o chamado de Ministros da Palavra. O sermão de Pedro em Atos 2 se torna um modelo para sermões modernos. 1ª Co 12-14 se torna uma fonte de princípios para o exercício dos modernos dons espirituais (até para aqueles que pensam que a maioria dos dons mencionados em 1ª Co já cessaram).
Pessoas às vezes tem se preocupado sobre outras distinções. Eles podem dizer, por exemplo, que a pregação apostólica e a Revelação são completamente diferentes porque envolve um novo conteúdo, uma nova revelação. Em contraste, sermões modernos e visões baseadas na Bíblia e intuições contém uma repetição de uma velha verdade. Mas a diferença aqui, embora reais, são sutis e facilmente exageradas. O ensino apostólico é, de modo notável, baseado no ensino do Antigo Testamento; os eventos da vida de Cristo os ensinamento de Jesus durante o seu tempo na terra (incluindo Lucas 24:25-27,44-49). Assim seus ensinamentos estão longe de ser absolutamente novos, ainda que possam ter sido totalmente novas para aqueles que a ouviram pela primeira vez. O livro de Apocalipse, entrelaça uma notável quantidade de materiais temáticos de Daniel, Ezequiel, Zacarias e outras fontes bíblicas. Em Lucas e Atos, pelo registro de eventos anteriores, nada fundamentalmente novo foi acrescido para além dos eventos registrados. Além disso, a autoridade divina não tem qualquer relação com o fato de algo ser velho ou novo. Deuteronômio é tão autoritativo quando repete uma revelação anterior quanto quando traz algo novo.[8]
Na moderna situação, pregação, visões e sonhos, são velhos em algum sentido, mas novos em um outro: Eles podem comunicar ideias que são novas para aqueles que as receberam. Além disso, há sempre novas aplicações para novas pessoas e novas circunstâncias (como acontece com o nome do homem no livro manchado de sangue).
Então onde está a diferença decisiva? Todos os processos modernos são completamente derivativos com respeito à autoridade. Pregação moderna possui autoridade apenas enquanto reitera a mensagem das Escrituras. O mesmo para as modernas intuições, visões, sonhos e todos os outros processos não-discursivos.
Com este quadro, nós devemos considerar seriamente acerca da suficiência da Bíblia e a falibilidade dos processos modernos. Esse princípio é aplicável tanto aos processos discursivos quanto aos processos não-discursivos. No caso de processos discursivos, um pregador pode pregar uma doutrina ou uma heresia. Uma intuição ou um sonho (quando interpretado) pode ser tanto verdadeiro quanto falso. Em um contexto moderno, nem os processos discursivos ou os não-discursivos podem adicionar algo mais além da Bíblia.
FOCOS DINSTINTIVOS PARA O CONTEÚDO
Nós precisamos traçar uma distinção final em relação ao conteúdo, invés do processo. Até agora temos falado sobre o processo pelo qual as pessoas vêm a dizer algo. Mas devemos nos atentar para o conteúdo daquilo que é dito. Este conteúdo pode tentar reexpressar o conteúdo das Escrituras, ou mesmo dizer algo acerca das circunstâncias que nos rodeiam, ou pode ser ainda uma combinação de ambas.
  1. Pessoas podem falar com foco em um conteúdo didático. Eles nos dizem o que pensam que a Bíblia nos ensina ou o que pensam que Deus nos comanda. Permita-nos chamar o conteúdo de tais conteúdos de ensino discursivo.
  2. Pessoas podem falar com foco em circunstâncias. Eles nos falam o que está acontecendo em torno deles. Ou eles nos falam o que aconteceu no passado ou (se eles predizem algo) o que acontecerá no futuro. Permita-nos chamar isso de ensino de conteúdo circunstancial.
  3. Pessoas podem falar com um conteúdo que objetiva combinar tanto o ensino bíblico quanto a informação circunstancial. Pessoas nos dizem como eles pensam que a Bíblia pode ser aplicada à situação atual. Permita-nos chamar isso de ensino de conteúdo aplicado.
Com o Novo Testamento, no entanto, Jesus e os apóstolos ensinam a palavra de Deus. Assim o conteúdo ensinado, se focado, fala de Deus, ou da história, ou das circunstâncias ou de aplicação. Então, onde é que entra o conteúdo circunstancial? Ele entra quando tentamos aplicar a Bíblia em nossas próprias circunstâncias modernas. O NT nos ordena aplicar a palavra em discernimento às nossas próprias vidas, onde continuamente confrontamos novas circunstâncias e novos desafios (Ef 5:16-17; Rm 12:1-2). Para realizar essa aplicação, devemos inevitavelmente lidar com a aplicação circunstancial e de conteúdo.
Nós encontramos esse tipo de coisa ilustradas muitas vezes na Bíblia, em casos onde a narrativa histórica envolve pessoas não-inspiradas ou ações sem o explícito endosso divino. Considere primeiramente aquilo que está em 2ª Cr 25:3-4 “Sucedeu que, sendo-lhe o reino já confirmado, matou a seus servos que mataram o rei seu pai; Porém não matou os filhos deles; mas fez segundo está escrito na lei, no livro de Moisés, como o Senhor ordenou, dizendo: Não morrerão os pais pelos filhos, nem os filhos pelos pais; mas cada um morrerá pelo seu pecado”. Nas ações descritas, nós encontramos os três tipos de conteúdo. Considere primeiro o princípio no verso 4 “Não morrerão os pais pelos filhos, nem os filhos pelos pais; mas cada um morrerá pelo seu pecado”. Esse princípio cita Dt 24:16. E obviamente um caso de ensino de conteúdo. Amazias pode ter ouvido ou relembrado tais ensinamentos de conteúdo antes de tomar sua decisão.
Em segundo lugar, o v. 3, implica que Amazias tinha que descobrir os fatos sobre o assassinato de seu pai Joás. Ele ou seus oficiais tinham que estar bem certos sobre as causas da morte de Joás para que pudessem seguir os deveres do processo legal (ver Dt 19:15-21). Esta averiguação dos fatos envolvidos é de conteúdo circunstancial. No fim, Amazias encontrou a verdade sobre o assunto, mas seu conhecimento da verdade ou suas declarações da verdade não foram autoritativamente divinas. Foi simplesmente um conhecimento ordinário.
Finalmente, a execução de assassinatos envolve aplicação de conteúdo.  A execução de Amazias combinou o ensino de conteúdo de Dt 24:16 e das penalidades para o assassinato (Gn 9:6) e um conteúdo circunstancial sobre quem foi o culpado nesse caso em particular.
A totalidade da questão em 2ª Cr 25:3-4 é inspirada e, portanto, um exemplo de ensino de conteúdo. Mas os eventos anteriores e a troca de informações entre os oficiais de Amazias não foram inspirados.
Nós podemos encontrar um grande número de exemplos similares com narrativas históricas na Bíblia. Por exemplo, 1ª Rs 1:43-48 é um registro inspirado de um relato não-inspirado da coroação de Salomão. A fala de Jônatas como distinta do registro inspirado (1:43-48), envolveu conteúdo circunstancial.  Esse relatório serviu de base para os atos aplicados de Adonias e seus convidados (1:49-51). Semelhantemente, Juízes 20:29-32 parece um caso de conteúdo de aplicação. Deus deu ordenanças aos israelitas para que eles fossem à luta e lhes prometeu vitória (20:28).  Contudo, parece que os determinantes que compunham os elementos da emboscada não surgiram de uma palavra divina explícita. Em vez disso, os comandantes levaram em conta o conhecimento circunstancial sobre estratégia militar e sobre o que os benjamitas provavelmente estariam esperando.
A  Bíblia é o fundamento para exercitar o bom discernimento sobre nossas circunstâncias. O ensino da Bíblia é assim fundamental na obra do Espírito Santo de ensino hoje. Mas há razões para crer que o Espírito Santo, como Criador e Redentor, está também envolvido nos aspectos mundanos de nosso aprendizado sobre nós mesmos e nossas circunstâncias (Jo 32:8; Sl 94:10; Pv 1:2-7). De um ponto de vista mais amplo, foi fundamental o processo pelo qual Amazias chegou à verdade sobre o homicídio de seu pai. O Espírito deu a Jônatas e aos comandantes militares o conhecimento que eles tinham. Esse conhecimento que provém do Senhor inclui a sabedoria e discernimento acerca da vida cotidiana que o resto do livro de Provérbios promove. Conhecimento cotidiano, bem como o ensino explícito da Bíblia, provêm do Senhor.
As circunstâncias atuais não possuem qualquer autoridade especial. A Bíblia, em contraste, possui divina autoridade. Consequentemente, entre a autoridade das circunstâncias atuais e a autoridade das declarações sobre as circunstâncias dos tempos bíblicos há um profundo abismo. Todavia, em um outro sentido há uma relação muito óbvia. Pessoas nos tempos bíblicos foram pessoas com problemas, lutas e circunstâncias como as nossas. Em certo sentido, então, a aplicação dos princípios gerais da Bíblia são aplicáveis às nossas próprias circunstâncias paralelas. Em todos os casos, o Senhor está envolvido em nosso ensino. Ele nos dá o conhecimento dos princípios bíblicos e conhecimento de circunstâncias particulares para as quais devemos responder.
A QUESTÃO DOS DONS CARISMÁTICOS MODERNOS
Agora nós podemos integrar os dons carismáticos em nosso quadro. Tanto em círculos carismáticos quanto não-carismáticos, vários tipos de dons funcionam por meio de vários processos. É desnecessário tomar notas de todos eles. Os tipos de dons mais controvertidos precisam de nossa atenção – em particular, os dons verbais que os carismáticos classificam como casos de palavra de conhecimento, palavra de sabedoria, profecia, discernimento de espíritos, línguas e interpretação de línguas.
O movimento carismático crê que os dons de profecia, discernimento de espíritos e línguas permanecem na Igreja hoje, enquanto os outros grupos sustentam que cessaram com o ministério do apostolado e com a cessação da revelação especial [9]. Eu sustento que os dons carismáticos modernos são análogos aos dons apostólicos inspirados. Consequentemente, pode ser ou não apropriado chamá-los usando os mesmos termos usados no NT.
Em termos de nossa anterior classificação, todos os  dons controversos são processos não-discursivos. Eles são controvertidos porque suas bases são mais obscuras e mais privadas – isto é, a base é não-discursiva ou intuitiva.
Em contrate, processos discursivos não são controvertidos porque eles apelam para a Bíblia. Claro que processos discursivos são falíveis. Doutrinariamente os pregadores podem soar a verdade das Escrituras. Mas pregadores heréticos também podem tentar espalhar suas heresias. E hereges podem ser o que há de mais perigoso se conseguirem dar argumentos plausíveis que apelem às Escrituras para apoiar seus pontos de vista. Consequentemente, processos discursivos também devem ser averiguados à luz das Escrituras como padrão final. Mas qualquer círculo crente na Bíblia está confortável com tais processos, em princípio por que eles reconhecem a necessidade de exposição da Bíblia.
Processos não-discursivos é que são o problema. Alguns carismáticos talvez pensem que pelo fato de a base ser mais pessoal, mais privada, mais intuitiva, é também mais diretamente obra do Espírito Santo e consequentemente menos sujeita ao erro que outros processos. Mas nós já observamos que tais pensamentos militam claramente em erro. O evangelho de Lucas não é menos inspirado que Apocalipse. Ademais, mesmo os eventos mais maravilhosos podem não passar de falsificação (2ª Ts 2:9),
Assim, de acordo com nossa teologia geral dos dons espirituais, dons discursivos e não-discursivos estão um ao lado do outro, com nenhuma superioridade particular. Como todos os dons, os dons discursivos também devem ser checados em sua conformidade com as Escrituras (1ª Co 14:37-38).
Mas estes dons não-discursivos deveriam mesmo ser chamados de dons do Espírito Santo? Nós já observamos em Sl 94:10; Jo 32:8; Pv 2:6 que o Espírito Santo é o criador e o mantenedor da vida humana, dando todo o conhecimento que ela tem. Então, nesse sentido, são dons.  No entanto, ao atribuir o rótulo de “dons”, não podemos atribuir infalibilidade a eles. Um dom de pregação, penso ser genuíno, não dá ao pregador moderno a infalibilidade, porque o dom opera em meio ao pecado e preconceito humano. O mesmo é verdade para os dons não-discursivos.
Muitos não-carismáticos ainda têm problemas com processos não-discursivos porque, defendem eles, são naturalmente não verificáveis. Se ninguém pode dizer se se conformam às Escrituras, então tais processos ameaçam perturbar o papel exclusivo que a Bíblia exerce na fundação da Igreja.
Mas nem todos os casos de processos não-discursivos são igualmente um problema. Para os propósitos deste artigo, ignoraremos temporariamente as línguas porque seu conteúdo não é fácil de ser analisado racional e discursivamente. Para outros dons verbais, nós precisamos considerar separadamente o conteúdo de ensino, conteúdo circunstancial e conteúdo de aplicação.
Ensinamento de conteúdo é como um sermão extemporâneo sem um texto. Se o processo é não-discursivo, o orador não está consciente  acerca dos textos sobre os quais sua fala se baseia.  Contudo, ainda que o orador não esteja consciente dos textos, os ouvintes podem se tornar conscientes dos textos que são relevantes. Se o conteúdo é bíblico, tais textos existem. Se o conteúdo não é bíblico, então o orador não deve ser crido. Consequentemente este tipo de conteúdo é verificável. Qualquer um que conhece bem a Bíblia, ou conhece o evangelho, pode verificar se a mensagem corresponde ao que ele sabe. Em minha experiência pessoal, tais testes não são difíceis. Muito do que é chamado “profecia” nos círculos carismáticos carrega consigo  uma fraseologia Bíblica. Não é tão difícil ver esse caráter bíblico geral.
É claro que é um pouco fácil avaliar um sermão textualmente baseado. O texto é explícito e os ouvintes têm imediato acesso a ele. Eles podem comparar o texto com o que o pregador diz. Mas ainda há dificuldades. Um herege esperto pode usar um texto plausível. E um pregador não-herético pode se ver derrapando para fora do texto pela situação ou calor do momento. Discernimento é, no entanto, necessário na avaliação do conteúdo do ensino, sem discussão se o processo envolvido foi discursivo ou não-discursivo.
Perceba também que pessoas diferentes no modo de exercício do discernimento. Para algumas pessoas o discernimento pode ser usualmente discursivo. Em suas mentes eles se lembram de um texto bíblico que se conforma com aquilo que o pregador diz ou o contradiz. Outras pessoas podem discernir de um modo não-discursivo. Eles sentem que aquilo que o pregador está dizendo está correto ou errado. Eles não podem apontar um texto específico, mas eles apenas sabem, talvez pelo fato de terem assimilado e digerido uma grande quantidade de conteúdo bíblico. O conhecimento digerido deles agora trabalha subconscientemente em seus corações para dar-lhes discernimento. O pensamento brota espontaneamente de suas mentes “algo está errado com esta mensagem”.
Desde que o Espírito Santo está trabalhando na vida dos crentes, nós também podemos descrever esses processos como obra do Espírito. Claro que o Espírito Santo opera de formas que não podemos mensurar a profundidade, mas ele também trabalha por meios que podemos descrever, tais como nosso conhecimento das Escrituras, um conhecimento que ele mesmo produz (1ª Co 2:10-16). Pelo lado humano, primariamente há um processo discursivo ou não-discursivo, mas a descrição humana não contradiz o fato de que o Espírito está trabalhando (novamente, penso no exemplo dos livros de Lucas e Apocalipse).
Diferentes tipos de pessoas se ajudam. Ocasionalmente, uma pessoa que discerne de modo discursivo pode não estar imediatamente habilitada para pensar em um relevante texto bíblico para usar em sua avaliação da mensagem. Porém alguém mais sente, pela via não-discursiva, que algo está errado. Então essa pessoa com discernimento discursivo ganha mais tempo e finalmente um texto vem à mente para ajudar a julgar a veracidade da mensagem do orador.
Notas:
[1] Veja O Catecismo de Heidelberg, questão 31; Confissão de Fé de Westminster 8.1 e Breve Catecismo de Westminster, perguntas 23-26
[2] cf. Grudem, Gifts, p. 260.
[3] No lado carismático, veja Wayne Gruden, “o dom de profecia no Antigo Testamento e hoje” (Westchester:crossway, 1988) 277-297. No lado não-carismático, veja H.Ridderbos, “A autoridade das Escrituras do Novo Testamento’ (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1963); R.B. Gaffin, Jr. Pespectivas sobre pentecostes: Estudos no ensino do Novo Testamento acerca dos dons do Espírito Santo (Grand Rapids: Baker, 1979) 89-93
[4]  Mais uma vez devo essa ideia às palestras em sala de aula feitas pelo Clowney
[5]  Note como J. Deere, surprised by the power of the Spirit (Grand Rapids: Zondervan, 1993) 64-71, argui por analogia a pura identificação entre os dons modernos de curar e os dons de cura exercido pelos apóstolos. Até este ponto, sua posição é semelhante a minha.
[6]  O nível dos dons messiânicos é mais difícil de ser analisado porque envolve mistérios da relação entre a verdadeira humanidade de nosso Senhor e sua verdadeira deidade. Com respeito a sua natureza humana, parece que o ministério de Jesus envolveu tanto processos discursivos (Jo 10:35-36; Mt 22:3-32) e processos não-discursivos (17:27; Lc 10:18)
[7] O.P. Robertson, The final Word: A Biblical Response to the case for Tongues and Prophecy today (Carlisle: Banner of Truth, 1993) 84. Este livro foi publicado em português
[8] A distinção entre comunicação direta e indireta de Deus também prova ser infrutífera. O que vale para ser direta? Deus deu as visões de Apocalipse com ou sem um background da composição psíquica de João e um conhecimento prévio da revelação do AT concernente a Daniel e Ezequiel? Deus deu a Pedro a visão de Atos 10 com ou sem Pedro ter fome? Deus deu a Pedro o sermão em At 2:14-36 com ou sem conhecimento prévio de Pedro acerca do AT e das instruções de Jesus constantes em Lc 24:44-49? É impossível responder qualquer uma dessas questões de modo definitivo, no entanto não é necessário respondê-las em ordem para apreciar o resultado das falas e atos de comunicação. O uso de Lucas dos resultados da pesquisa histórica  não desvaloriza o produto. O modo de revelação não é o problema na discussão da autoridade do produto.
[9] O melhor argumento para a continuação dos dons é provavelmente de Grudem em gift, em W.A. Grudem, The gift of Prophecy in I Corinthians (Washington: University Press of America, 1982). Para cessação, veja Gaffin,Perspectives; R.F.White, “Gaffin and Grudem on Eph 2:20: In defense of Gaffin’s Cessacionist Exegesis” WTJ 54(1992) 303-320; “Richard Gaffin and Wayne Grudem on I Co 13:10: A comparison of Cessationist and Noncessationist Argumentation” JETS 35/2 (1992) 173-181. A literatura sobre estas questões é volumosa. Mas Grudem e Gaffin são os porta-vozes mais articulados de ambas posições e podem ser tomados como representantes de um círculo muito mais amplo.
Título original: Modern Spiritual Gifts as Analogous to Apostolic Gifts: Affirming Extraordinary Works of the Spirit Within Cessationist Theology.
Referência:
http://frame-poythress.org/modern-spiritual-gifts-as-analogous-to-apostolic-gifts-affirming-extraordinary-works-of-the-spirit-within-cessationist-theology/
Tradução: Renan Moreira (Versão em português disponibilizada em: http://teologiacarismatica.com.br/).