quarta-feira, 28 de maio de 2014

O Molinismo e a Onisciência de Deus

 
Paul Helm

Conhecimento Médio

Uma sutil e ambiciosa forma de tentar conciliar a posição “isenta de risco” da providência com a ideia de uma ação humana não-determinista foi feita pelo teólogo jesuíta Luís de Molina (1535-1600). Sua opinião foi recentemente revivida por Alvin Plantinga e tem recebido nova e intensa atenção. [1] A idéia do conhecimento médio pode ser brevemente explicada da seguinte forma.

Como nós podemos entender a ideia da onisciência de Deus, a ideia de que Deus conhece toda a verdade? Uma forma útil é prestar atenção aos tipos de verdade que existem para Deus conhecer. Há, primeiramente, verdades necessárias. Por exemplo, as leis da lógica e da aritmética são verdades necessárias. Tais verdades não podem ser falsas. Tais verdades não dependem de Deus querer que elas sejam verdades; ele as conhece como verdadeiras porque ele é onisciente.

Então há uma miríade de verdades que são verdadeiras porque Deus quer que seja assim. Por exemplo, Londres é a capital da Inglaterra, e a batalha de Hastings foi travada em 1066. Essas, e todas as verdades semelhantes, são verdadeiras em virtude do fato de que Deus quis que elas fossem verdadeiras. Se Deus não as tivesse livremente desejado, então elas não seriam verdadeiras. Por essa razão, seu conhecimento sobre elas é chamado de conhecimento livre. Elas aconteceram como resultado da livre decisão de Deus. Deus não conhece essas verdades em um tempo depois de desejá-las, mas ele as conhece ao desejá-las, e não da forma como nós conhecemos muitas de nossas ações ao fazê-las.

Além desses dois tipos de conhecimento, há também o conhecimento que Deus tem das possibilidades que ele não deseja, mas que existem como possibilidades abstratas. Por exemplo, Bognor Regis é a capital da Inglaterra, e a batalha de Hastings foi travada em 1660. Entre essas possibilidades abstratas, há proposições condicionais. Por exemplo, se Bognor Regis fosse a capital da Inglaterra, Londres teria menos de um milhão de habitantes. Outro exemplo: se João tivesse se casado com Joana, eles teriam tido três filhos. O conhecimento que Deus tem de tais possibilidades tem sido chamado de conhecimento médio, um conhecimento a meio caminho entre o conhecimento que Deus tem de verdades necessárias e o seu conhecimento livre.

A Bíblia dá exemplos do conhecimento que Deus tem de tais possibilidades. Duas passagens bíblicas são particularmente famosas nessa discussão: 1Samuel 23.7-13 e Mateus 11.20-24. O que a primeira passagem deixa claro é que Deus sabia que se Davi continuasse na cidade de Queila, Saul o alcançaria, e que se Saul chegasse a Queila os homens da cidade lhe entregariam Davi. O que Jesus afirma na passagem de Mateus é que, se suas poderosas obras tivessem sido realizadas nas impenitentes cidades de Tiro e Sidom, elas teriam se arrependido.

A partir desses dados não pode haver dúvida do fato de que Deus possui o conhecimento de possibilidades que nunca aconteceram. Deus sabia o que teria acontecido se Davi tivesse permanecido em Queila, mas Davi não permaneceu em Queila. Cristo sabia o que teria acontecido a Tiro e Sidom se suas poderosas obras tivessem sido realizadas ali, mas suas obras não foram realizadas ali.

Deus, então, em sua onisciência, conhece proposições que podem não ser falsas, e proposições que podem ser falsas, mas são verdadeiras. Ele também conhece proposições que podem ser verdade, mas que de fato não são verdade, como as que se referem a Davi e Queila e as que se referem a Tiro, Sidom e as obras poderosas de Cristo. É a partir desse vasto leque de possibilidades que Deus deseja o mundo real, o mundo em que eu e você habitamos.

Deve ser afirmado que tudo isso é terreno comum tanto a Molina quanto a seus oponentes. Todos os lados aceitam a ideia do “conhecimento médio de Deus” [conhecimento de possibilidades abstratas]. O que é distintivo na visão de Molina é que ele afirma que entre as proposições condicionais que Deus conhece estão aquelas que indicam o que aconteceria se um indivíduo realizasse uma ação livre (i.e., não-determinista). Ele conhece, por exemplo, miríades de proposições do tipo:

(A) Na circunstância C, se Aline livremente escolhe entre X e Y, ela escolherá Y.

E, Molina afirma, é porque Deus conhece todos os resultados de todas as escolhas possíveis que as pessoas fazem, que ele é capaz de criar – realizar – exatamente aquelas possibilidades que são necessárias a ele para alcançar seus propósitos, e que envolvem escolhas livres e não-determinadas. Portanto, as livres escolhas das criaturas são compatíveis com o perfeito pré-conhecimento de Deus e com sua providência isenta de riscos. Como William Lane Craig, um defensor do conhecimento médio, tem dito:

Já que Deus sabe o que qualquer criatura livre faria em qualquer situação, ele pode, ao criar a situação adequada, fazer com que essas criaturas realizem seus propósitos de forma que elas ajam livremente. [2]

Vamos ver como isso acontece em detalhes tomando um exemplo trivial, mas concreto. Suponhamos que, entre as proposições que Deus conhece, estejam as seguintes proposições condicionais:

(A) Somente se Aline estiver sob a circunstância C e for livre para escolher entre A e B, ela escolherá A.

(B) Somente se Aline estiver sob a circunstância C* e for livre para escolher entre A e B, ela escolherá B.

Suponhamos que Deus queira que Aline escolha B. Nesse caso, Deus claramente produzirá a circunstância C*.

Há uma grande dificuldade, porém, com essa suposição. É que estamos supondo que Aline seja indeterminadamente livre. Como ela é indeterminadamente livre, ela tem o poder, em um determinado conjunto de circunstâncias, de escolher qualquer uma de um número de alternativas abertas diante de si. Como dizem os defensores do conhecimento médio, qual alternativa Aline escolherá depende somente dela, e não de Deus.

Se é assim, então Deus não pode saber que (A) ou (B) é verdade. E como ele não pode saber que (A) é verdade, então ele não pode realizar (A) como um todo. Ele pode realizar Aline, e ele pode realizar a circunstância C. O que ele não pode realizar é Aline livremente escolhendo (A) na circunstância C, pois se Aline vai escolher ou não fazer (A) quando surgir a circunstância C é algo que cabe somente à própria Aline.

Os proponentes do conhecimento médio apresentam o seguinte quadro sedutor da relação de Deus com várias possibilidades condicionais. É como se Deus tivesse diante de si inumeráveis arquivos. Cada um desses arquivos é consistente e completo. Cada um representa um possível segmento do universo. Deus vistoria todos os arquivos e seleciona aqueles que, junto, formam esse universo que, em sua sabedoria e bondade, ele deseja trazer à existência. Entre os arquivos estão aqueles que contêm referência às livres ações humanas em certas circunstâncias. Deus realiza esses arquivos que se referem a circunstâncias que, se os indivíduos forem a elas submetidos e agirem livremente, escolherão de acordo com o fim que Deus quer realizar. Assim, eles dizem, a liberdade humana é preservada, e uma providência isente de riscos também é preservada.

A força do ponto de vista do conhecimento médio é que ele apresenta o universo, e inumeráveis outros universos possíveis, como já possuindo seu curso, embora em forma condicional. Do resumo total de todas essas condições, Deus seleciona (ele realiza) algumas delas para realizar o universo. O universo não pode, por causa da força da liberdade endossada por Molina, ter uma forma sombria, uma forma de tipo puramente condicional, que é a imagem em espelho de como o universo será quando for real, pois como ele será quando ele for real depende, pelo menos em parte, das livres ações de agentes que são reais, uma vez que Deus decidiu criar o universo.

Nós não devemos nos deixar seduzir por esse quadro. Deus não poderia conduzir o curso de eventos dessa forma, já que todos os indivíduos do universo real possuem liberdade não-determinada. As circunstâncias nunca asseguram a realização de uma determinada livre-escolha. Elas apenas providenciam as condições para a livre escolha de uma das várias possibilidades. Portanto, Deus não poderia “fracamente realizar” [3] certos resultados. Ele não poderia usar seu conhecimento sobre o que uma criatura faria sob certas circunstâncias para alcançar o fim desejado.

William Lane Craig, em uma exposição particularmente clara dessa posição, distingue três “momentos” lógicos na realização do mundo. O segundo desses momentos corresponde ao conhecimento médio de Deus. Craig afirma:

No segundo momento, que corresponde ao conhecimento médio de Deus, estão aqueles aspectos do mundo real que são conjuntos de assuntos referentes ao que as criaturas livres farão em qualquer conjunto de circunstâncias. Por exemplo, nesse segundo momento o conjunto de assuntos “se Marcos estivesse sob a circunstância C, então ele livremente realizaria a ação X”, é real. É claro que nem Marcos nem as circunstâncias existem ainda, exceto como ideias na mente de Deus. Contudo, se Marcos for realizado por Deus e colocado sob a circunstância C, então ele livremente realizará a ação X. Dessa forma. O conjunto de assuntos que são expressos pela verdade contrafatual referente às decisões livres tomadas pelos seres humanos já é real nesse segundo momento. Muito embora nesse momento o mundo real em toda a sua plenitude ainda não exista, certos aspectos dele já existem, a saber, os conjuntos de assuntos logicamente necessários que correspondem às verdades contrafatuais referentes à liberdade das criaturas. [4].

Dessa forma, Craig afirma que, antes de Deus decidir criar o mundo, todas as características do mundo que ele estava prestes a criar, incluindo todos os resultados das livres decisões de suas criaturas, já estavam presentes em sua mente. Tudo o que Deus teve que fazer ao criar o mundo foi fazer com que essas realidades específicas (que existiam em sua mente) existissem de fato. Mas é exatamente esse quadro da relação de Deus com as possibilidades que deve ser resistido porque, devido à liberdade humana não-determinada, ele não pode ser verdade. Como William Hasker argumenta, ao criticar esse ponto de vista: “como um agente é genuinamente livre, não há verdades contrafatuais que o agente definidamente faria sob várias circunstâncias possíveis” [5].

A fonte dessa confusão pode estar na falha entre distinguir possibilidades abstratas e realidades concretas. Há, na mente de Deus, conjuntos de possibilidades abstratas como, por exemplo, a ideia de uma certa pessoa possível. Ao criar uma pessoa real, contudo, Deus cria todas as forças físicas e psicológicas dessa pessoa, e  muito mais do que isso. A criação não é como a abertura da porta da jaula de um leão, é a chamada do leão à existência [6].

Nós também podemos ser induzidos ao erro por uma analogia extraída da conclusão oposta. Nós frequentemente dizemos que conhecemos nossos amigos de forma que nós definitivamente sabemos o que eles escolheriam em um dado conjunto de circunstâncias. Se nós sabemos, seguramente Deus pode saber? Mas isso é esquecer não somente que o conhecimento de Deus é infalível, mas também que nossos amigos são genuinamente livres, o que significa que, em qualquer conjunto de circunstâncias, eles são livres para escolher o curso oposto daquele que, com base na experiência passada, eles de fato escolheriam.

Há então possibilidades – sobre o resultado de escolhas livres não-determinadas – que Deus não conhece completamente. Portanto, ele não pode prever todas as possibilidades com respeito à livre escolha de uma pessoa. E assim, como seu conhecimento médio de tais escolhas livres é necessariamente incompleto, ele não pode exercer um controle providencial isento de “risco” sobre sua criação através de seu conhecimento médio.

Nós começamos essa discussão fazendo referência à onisciência de Deus. Mas a onisciência de Deus é limitada por aquilo que é concebível. Se Aline é livre de forma indeterminada, então não é conhecível, nem a Deus, nem a nós nem a qualquer outro observador o que Aline fará quando, em um dado conjunto de circunstâncias, ela for confrontada com uma escolha.

Isso de alguma forma envolve um limite sobre a onisciência de Deus? Nós estamos dizendo que há verdades que Deus não pode conhecer? Diferentes respostas têm sido dadas a essa questão. Swinburne, como nós vimos, crê que Deus livremente nega a si mesmo o conhecimento daquilo que ele poderia conhecer. Outros argumentam que até Aline, como um agente livre, realmente toma decisões livres, e por isso não há nada para saber. E como não há nada para saber, não há nada para Deus saber. Dessa forma, em vez do conhecimento médio ser uma forma de conciliar a onisciência divina (e a pré-ordenação) com a liberdade humana, nós devemos concluir que a liberdade humana limita o escopo da onisciência divina.

Tais conjuntos de assuntos não impedem que Deus faça uma suposição bem fundamentada, uma posição habilidosa, sobre o que Aline provavelmente fará. Talvez, sob a circunstância C, muito provavelmente Aline faça A. Mas o conhecimento de tais probabilidades corrói a infalibilidade que é classicamente atribuída a Deus, e que os proponentes do conhecimento médio certamente desejam que ele continue possuindo.
[7]

Notas:

[1] Veja Alvin Plantinga, The Nature of Necessity (Oxford: Clarendon Press, 1974), ch. IX.

[2] William Lane Craig, The Only Wise God (Grand Rapids, Michigan: Baker, 1987), p.135.

[3] A. Plantinga, op. cit., p. 173.

[4] Willian Lane Craig, op. cit., p. 143

[5] William Hasker, God, Time and Knowledge, p. 52.

[6] Sobre isso, e muito mais críticas detalhadas do conhecimento médio molinista, veja Richard M. Gale On the Nature and Existence of God (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), ch. 4.

[7] Para discussão posterior, veja Luís de Molina, On Divine Foreknowledge  (Parte  IV da Concórdia), trad. Alfred J. Freddoso (Ithaca: Cornell University Press, 1988). O conhecimento médio também é defendido por Thomas P. Flint “Two Concepts of Providence”, in Divine and Human Action, org. T. V. Morris (Ithaca: Cornell University Press, 1988). Ele é criticado por William Hasker, God, Time and Knowledge, e por Robert Merrihew Adams, “Middle Knowledge and the Problem of Evil”. Há outras soluções propostas para o problema do conhecimento de Deus e a liberdade humana não-determinada, mas elas tendem a focalizar sobre o conhecimento de Deus como distinto de sua vontade, e assim são menos relevantes para a providência divina. Veja, por exemplo, Alvin Plantinga “On Ockham’s Way Out”, in The Problem of Evil, org. M. M. Adams and R. M. Adams (Oxford: Oxford University Press, 1990).

* Colocações minhas em parênteses.


Referência:

HELM, Paul, A Providência de Deus (Série Teologia Cristã), ed. Cultura Cristã, cap. 2, ps. 48-53.

Níveis Causais

Paul Helm

Fundamental para qualquer tentativa de obter compreensão sobre o relacionamento entre a atividade de Deus e as ações humanas que ocorrem dentro da ordem da providência divina é o reconhecimento do fato de que Deus é o Criador e que os agentes humanos são criaturas. Nenhum modelo da atividade divina e da ação humana pode ignorar esse fato e permanecer fiel ao ensino bíblico. O problema surge não com o reconhecimento desse fato, mas com a construção de uma forma de compreensão que faça justiça tanto a esse fato quanto à visão da providência isenta de risco.

Uma forma pela qual certos teólogos abordam o problema da agência divina e da agência humana é distinguir entre duas ordens de atividade, a ordem divina e a ordem humana. Tomás de Aquino, por exemplo, expõe essa distinção nos seguintes termos:

Deus age suficientemente dentro das coisas como o agente causador primário, e isso não significa que a atividade das causas secundárias seja supérflua. Uma ação não resulta de dois agentes do mesmo nível. Nada há, contudo, contra uma e a mesma ação  resultando de uma causa primária e de uma causa secundária. Deus não somente dá forma às coisas, mas conserva sua existência, aplica-lhes suas ações e é o fim de todas as ações, como nós já afirmamos. [1]

Aquino se refere a níveis. Uma ação, digamos, a ação de digitar essa página, resulta de dois agentes: resulta de Deus e resulta de mim. Mas essas forças causais não competem nem entram em conflito uma com a outra, porque são ordens diferentes. A causa divina primária assegura a realização da ação de digitar essa página, do ponto de vista da ordem divina, enquanto minha própria força causal assegura a realização dessa ação em um nível secundário.

Entre os Reformadores, João Calvino faz uma afirmação semelhante:

Essa diferença de causas, sobre a qual eu já me estendi, não deve ser esquecida – que uma causa é próxima e a outra é remota. A observação cuidadosa dessa distinção é indispensável  para que nós compreendamos quão sábia e quão importante é a distinção entre a justa e equitativa Providência de Deus e a turbulenta impetuosidade dos homens. Nossos adversários nos enchem de calúnias mesquinhas e escandalosas, quando colocam em nossos lábios que nós fazemos de Deus o autor do pecado ao afirmar que sua vontade é a causa de todas as coisas que são feitas. Pois quando um homem age injustamente, incitado pela ambição, ou pela avareza, ou pela luxúria, ou por qualquer outra paixão depravada, se Deus, por seu justo e secreto juízo, realiza suas obras por meio dessas mãos, a menção de pecado ao pode ser feita com referência a Deus, em seus justos atos. [2]

O sol se levanta dia após dia, mas é Deus quem ilumina a terra com seus raios. A terra produz seus frutos, mas é Deus quem dá o pão e é Deus quem dá força pela nutrição desse pão. Em uma palavra, como toda causa inferior e secundária, vista em si mesma, cobre como cortinas a glória de Deus de nossa vista (o que acontece muito frequentemente), o olho da fé deve olhar mais alto, e contemplar a mão de Deus agindo através de todos esses seus instrumentos. [3]


É pelo uso dessa distinção entre Deus, a causa primária, e as causas secundárias que Calvino (por exemplo) é capaz de distinguir entre (a) o propósito e a intenção humana e (b) o mais elevado propósito e intenção de Deus em ordenar a ação da causa secundária.

Aquelas coisas que são vaidosa e injustamente feitas pelo homem são, correta e justamente, as obras de Deus! [4]

Quando Deus expõe seu poder através de meios e causas secundárias, esse poder nunca deve ser separado desses meios ou causas inferiores. É o excesso de um beberrão dizer: “Deus decretou tudo o que deve acontecer, e tudo deve acontecer; portanto, interpor qualquer cuidado ou estudo, ou esforço nosso, é supérfluo e vão”. Mas já que Deus prescreve a nós o que nós devemos fazer, e deseja que nós sejamos os instrumentos da operação de seu poder, julguemos ilegal nos separarmos naquelas coisas que ele faz junto conosco. [5]

E um escritor moderno, James Ross, escreveu:

Empregando o princípio de Aquino, de que Deus é o produtor suficiente de todos os eventos finitos, nós sabemos que em algum sentido ele é a causa tanto dos sofrimentos quanto dos atos imorais dos homens. Apesar disso, nós não podemos pensar que ele provoque esses eventos de tal forma que os atos dos homens deixem de ser imorais e os eventos deixem de causar sofrimento. Deus pode ser a causa de minhas ações pecaminosas de tal forma que eu ainda faça o que eu não deveria fazer com pleno conhecimento, previsão e responsabilidade... Qualquer interpretação da relação de Deus com o mundo que entre em conflito com essa suposição é obviamente falsa e contrária às doutrinas cristãs às quais a análise é primariamente relevante... nossa solução envolve uma proposição tal como a de Aquino: que para o mesmo evento duas correntes de suficiência causal e de necessidade causal estão simultaneamente presentes, e são simultaneamente requeridas. [6]

O teólogo anglicano Austin Farrer argumentou que:

Nós entramos em sua [i.e., de Deus] ação simplesmente por agir, que seja a ação um movimento de pensamento ou um movimento da mão. Nós cremos e até mesmo afirmamos encontrar, que sua ação sustenta ou inspira as nossas, mas a assistência divina é experimentada simplesmente em seus efeitos. [7]

A articulação causal (podemos dizer) entre as ações finitas e infinitas pode ou não tomar parte em nossa preocupação com Deus e sua vontade. [8]

Tanto as ações humanas quanto as ações divinas permanecem reais e, portanto, livres na relação entre si. Não conhecendo a modalidade da ação divina, não podemos posicionar o problema de sua mútua relação. [9]

Dois agentes para o mesmo ato é algo impossível, se ambos os agentes tiverem o mesmo sentido e estiverem no mesmo nível. [10]

Farrer afirma a existência de um duplo nível de causalidade, mas não oferece explicação sobre isso, já que o exato relacionamento entre o nível mais alto e o nível mais baixo de causalidade é oculto a nós.

Como explicado por Vernon White, [11] isso significa que Deus organiza e ordena a realidade de tal forma que, seja qual for a intenção da criatura, ela implica a intenção divina em um contexto mais amplo. Dessa forma, a intenção de Judas de trair Jesus tem um sentido dentro da intenção de Deus diferente da intenção do próprio Judas. Isso é benéfico, mas nós não podemos dizer (para preservar os dois níveis de causalidade rigorosamente) que seja o que for que Judas planeje, isso está colocado por Deus em um esquema mais amplo de significado, mas que de alguma forma Deus causa a intenção específica de Judas, e acrescenta o próprio nível causativo inferior do evento.

A proposta de dois níveis parece ser uma solução engenhosa e persuasiva. Ela certamente tem o mérito de preservar a disparidade entre a ação do Criador e a ação de suas criaturas, pois é totalmente apropriado que essas duas ações sejam consideradas como ações de diferentes ordens.

Se nós olharmos um pouco mais de perto, contudo, certas dificuldades emergem. Precisamente qual é a força causal primária da qual minha ação deriva? “Deriva” em que sentido? Claramente não é adequado entender essa derivação em termos da provisão de Deus das condições necessárias para a minha ação, pois enquanto a provisão das condições necessárias permitiria ou tornaria possível minha ação, essas condições não assegurariam que minha ação fosse realizada. Para assegurar a ocorrência dessa ação, as condições divinas, condições de ordem primária, teriam que ser tanto necessárias quanto suficientes.

Mas se essas condições são tão necessárias quanto suficientes para a realização da ação, então elas asseguram que a ação aconteça. Mas se existem causas divinas que asseguram que essa ação aconteça, então que parte tomam os desejos e as razões (e o que mais nós ordinariamente pensamos que produzem nossas ações) da pessoa?

De acordo com essa visão, o que Deus provê, por sua atividade causativa de primeira ordem, não pode ser meramente que eu existo e possuo certos poderes. Em vez disso, Deus age de tal forma que eu realmente emprego esses poderes na realização de uma ação definida. Se eu tenho meu poder (independente do que Deus possa fazer) para realizar a ação, então a causalidade divina, primária, pode ser somente a provisão das condições necessárias para essa ação, nunca uma condição suficiente.

Em resumo, é difícil ver que possa haver dois conjuntos separados de condições necessárias e condições suficientes para a mesma ação, mesmo que um desses conjuntos seja de condições primárias e o outro seja de condições secundárias. Chamar certas condições de primárias e outras de secundárias não resolve o problema por si mesmo.


Notas:

[1] Summa Theologiae vol. 14, trad. T. C. O’ Brien (Londres: Eyre and Spottiswoode, 1975), Ia. 105.5.

[2] A Defence of the Secret Providence of God, p. 251.

[3] Ibid., p. 231

[4] Ibid., p. 233.

[5] Ibid., pp. 235,236.

[6] Philosophical Theology (Indianápolis: Bobbs-Merrill, 1969), pp. 252,253. Veja também Kathryn Tanner, God and Creation in Christian Theology: Tyranny or Empowerment? (Oxford: Blackwell, 1988).

[7] Austin Farrer, Faith and Speculation, (Londres: Black, 1967), pp. 64,65. Veja também Vernon White, The Fall of a Sparrow (Exeter: Paternoster Press, 1985).

[8] Austin Farrer, op. cit., p. 65.

[9] Austin Farrer, op. cit., p. 66.

[10] Austin Farrer, op. cit., p. 194.

[11] Vernon White, op. cit., p. 116.

Referência:

HELM, Paul, A Providência de Deus (Série Teologia Cristã), ed.
Cultura Cristã, cap. 7, ps. 158-162

sábado, 24 de maio de 2014

História dos Apócrifos

Roger T. Beckwith
OS APÓCRIFOS

As edições maiores da Bíblia em língua inglesa - desde a Grande Bíblia de Tyndale e Coverdale (1539) - muitas vezes incluem uma seção separada entre o Antigo e o Novo Testamento intitulada "Apócrifos". Consiste no acréscimo de livros inteiros ou em parte. A Bíblia em latim, a Vulgata, traduzida por Jerônimo (entre 382 e 405 d.C.), inseriu os Apócrifos no próprio Antigo Testamento – alguns livros como elementos á parte e outros como anexos ou acréscimos dos livros bíblicos de Ester, Jeremias e Daniel. Nas versões católicas romanas da Bíblia, como a Versão de Douay e a Bíblia de Jerusalém, esses elementos se encontram na mesma posição em que eram dispostos antes da Reforma. Nas traduções protestantes, contudo, os Apócrifos são totalmente omitidos ou agrupados em seção separada.

Como a Vulgata de Jerônimo passou a incluir os Apócrifos

Ao distinguir os Apócrifos dos livros do Antigo Testamento, os tradutores protestantes não fizeram nada que fosse totalmente original, pois apenas puseram em prática mais do que nunca os princípios em que Jerônimo (345-420 d. C.) se baseara ao empreender sua tradução do Antigo Testamento para o latim, a grande Vulgata latina. A Vulgata foi traduzida do original hebraico. No entanto, a tradução anterior à Vulgata, a Vetus latina [Antiga latina], foi vertida a partir do Antigo Testamento grego, a Septuaginta (ou LXX). Em algum ponto, inicial ou posterior, os livros e os textos que não integravam a Bíblia hebraica acabaram adicionados ao Antigo Testamento grego, e de lá passaram para a Vetus latina. Jerônimo os manteve em sua nova tradução, a Vulgata, mas incluiu notas explicativas em vários pontos para destacar que os acréscimos não consistiam em partes genuínas da Bíblia, designando-os “apócrifos” (gr., apokrypha, “os que haviam sido escondidos”). De acordo com o ensino de Jerônimo – e com o entendimento sobre o cânon do Antigo Testamento defendido por Jesus, pelos autores do Novo Testamento e pelos judeus do primeiro século (v. Cap. 8) -, os tradutores protestantes do século 16 não consideraram esses escritos parte do Antigo Testamento, mas os reuniram em outra seção a que eles também, como Jerônimo, chamaram de “Apócrifos”.

A razão de Jerônimo ter escolhido esse nome não é evidente de imediato. Provavelmente ele seguiu os passos de Orígenes, que um século e meio antes havia declarado que os judeus usaram esse nome para designar seus livros não canônicos mais apreciados. Orígenes e Jerônimo eram dois dos mais distintos estudiosos do judaísmo entre os pais da igreja; portanto, seria natural que eles usassem o termo de acordo com o sentido judaico, ainda que o aplicassem aos livros judeus não canônicos mais estimados pelos cristãos. Os judeus jamais destruiriam livros religiosos respeitados; sendo inadequados para o uso, eles seriam escondidos e deixados para se deteriorarem de forma natural. Assim, o termo “escondidos” passou a significar “muito estimados, ainda que não canônicos”.

Jerônimo não limitou o uso de “Apócrifos” aos livros judaicos; também o empregou para designar os livros não canônicos de origem cristã – como O pastor, de Hermas -, muito populares entre os cristãos. Segue a mesma ideia a expressão moderna “Apócrifos do Novo Testamento”, que designa obras tardias que imitam escritos do Novo Testamento.

Como as traduções grega e latina passaram a incluir os apócrifos

É muito variado o entendimento sobre como o Antigo Testamento grego e, por consequência, o latino, passaram a incluir os Apócrifos. O Códice alexandrino (o grande manuscrito do quinto século d.C. de toda a Bíblia grega) foi impresso e publicado no século 18. Pelo fato de esse códice conter os Apócrifos, os editores do século 18 presumiram que o Antigo Testamento desse manuscrito cristão tivesse sido copiado de manuscritos judaicos que também os incluíam, e que, por consequência, os Apócrifos deveriam integrar a tradução e o cânon dos judeus de língua grega de Alexandria – que o produziram no período pré-cristão (ainda que eles não integrassem a Bíblia ou o cânon dos judeus de língua semita da Palestina). Essa hipótese foi sustentada por longo tempo, e outro pressuposto – de que a maior parte dos livros Apócrifos foi composta em grego, fora da Palestina – foi formulado para apoiá-la.

Sabe-se hoje que todos os elementos dessa teoria são infundados: 1) Os manuscritos de pele de animal suficientemente grandes para conter todo o Antigo Testamento passaram a existir entre cristãos ou judeus apenas na parte final do quarto século. Os manuscritos bíblicos mais antigos de origem cristã se encontram em papiros, e sua extensão equivale apenas ao tamanho de três dos maiores livros. 2) Os judeus de Alexandria eram orientados em grande parte pela comunidade da Palestina, e seria muito improvável que eles estabelecessem um cânon diferente; além disso, seu maior escritor, Filo, apesar de fazer citações frequentes do Antigo Testamento em suas alentadas obras, jamais fez referência a nenhum dos Apócrifos. 3) Os manuscritos bíblicos mais antigos de origem cristã contêm pouquíssimos livros apócrifos, e, até cerca de 313 d. C., apenas Sabedoria, Tobias e Eclesiástico chegaram a estar presentes; só mais tarde foram acrescentados os outros livros apócrifos. 4) Não se crê mais que os Apócrifos tenham sido compostos majoritariamente em grego ou fora da Palestina, e o próprio Eclesiástico (Sirácida) declara ter sido escrito em hebraico (cf. Seu prólogo; grande parte de seu texto hebraico já foi recuperado). Quase todos os Apócrifos, excetuando-se Sabedoria, 2Macabeus, podem de fato ter sido traduzidos a partir do original hebraico ou aramaico, escrito na Palestina.

O uso dos Apócrifos pelos escritores cristãos confirma a análise mencionada anteriormente. O Novo Testamento parece demonstrar o conhecimento de um ou outro texto apócrifo, mas nunca lhes confere autoridade como faz com muitos livros canônicos do Antigo Testamento. Ainda que o Novo Testamento cite várias partes do Antigo cerca de trezentas vezes, na verdade ele nunca cita os Apócrifos (os versículos 14 e 16 de Judas não contêm uma citação dos Apócrifos, mas de outro escrito judaico, 1Enoque). No segundo século, Justino Mártir e Teófilo de Antioquia, que mencionavam com frequência o Antigo Testamento, jamais aludiram a nenhum livro dos Apócrifos. No fim do segundo século, Sabedoria, Tobias e Eclesiástico foram algumas vezes tratados como Escritura, mas isso jamais ocorreu com nenhum outro texto apócrifo. A aceitação definitiva deles nas traduções grega e latina foi um processo vagaroso. Quase o mesmo se pode dizer das listas cristãs dos livros do Antigo Testamento: as mais velhas incluem alguns escritos apócrifos; e a mais antiga de todas, a de Melito (c. 170 d. C.), não inclui nenhum.

Aceitação e rejeição dos Apócrifos

A disposição crescente da igreja anterior à Reforma de tratar os Apócrifos não só como obras de edificação, mas como a própria Escritura refletia o fato de que os cristãos – em especial os que viviam fora de países de línguas semíticas – estavam perdendo o contato com a tradição judaica. Entretanto, nesses países se manteve uma tradição cristã culta semelhante aos elementos da tradição judaica, sobretudo por estudiosos como Orígenes, Epifânio e Jerônimo, que cultivavam o aprendizado da língua hebraica e a manutenção dos estudos judaicos. No final do quarto século, Jerônimo considerou necessário destacar com grande ênfase a distinção entre os Apócrifos e os livros inspirados do Antigo Testamento, e uma pequena parte de escritores continuou fazendo a mesma distinção durante toda a Idade Média, até o surgimento dos reformadores protestantes, que fizeram dessa distinção parte importante de sua doutrina da Escritura. No Concílio de Trento (1545-1563), entretanto, a Igreja de Roma tentou suprimir a diferença e situar os Apócrifos (com exceção de 1 e 2Esdras e Oração de Manassés) no mesmo nível dos livros inspirados do Antigo Testamento. Isso se deu como consequência de três fatores: 1) a exaltação da doutrina da tradição oral por parte de Roma, 2) seu entendimento de que a igreja é capaz de criar Escrituras e 3) sua aceitação de certos conceitos controvertidos (em especial as doutrinas do purgatório, das indulgências, da justiça das obras como contribuição para a justificação), criados com base em algumas passagens dos Apócrifos. Esses ensinos deram apoio à reação do catolicismo romano contra Martinho Lutero e outros líderes da Reforma protestante, iniciada em 1517.

Por causa dessas passagens controvertidas, alguns protestantes cessaram por completo de usar os Apócrifos. No entanto, outros protestantes (em especial luteranos e anglicanos), ainda que evitassem essas passagens e as ideias nelas contidas, continuaram lendo os Apócrifos de forma geral como literatura religiosa edificante. Os Apócrifos, como os outros escritos pós-canônicos (em especial os Pseudepigráficos, os manuscritos do mar Morto, os escritos de Filo e de Josefo, os Targuns e a literatura rabínica antiga) podem ser úteis de outras formas. Eles apresentam as interpretações mais antigas dos escritos do Antigo Testamento; explicam o que aconteceu no período entre os dois Testamentos; apresentam costumes, ideias e expressões que fornecem um repertório útil para a leitura do Novo Testamento.

O conteúdo dos Apócrifos

São quinze os livros que compõem os Apócrifos (há quem conte apenas catorze ou doze livros, por considerar alguns deles em conjunto), e consistem em diversos tipos de escritos – narrativa, provérbios, profecia e liturgia. Provavelmente datam do terceiro século a. C. (Tobias) ao primeiro século d. C. (2Esdras e talvez a Oração de Manassés).

1. 1Esdras, algumas vezes chamado 3Esdras, cobre o mesmo assunto do livro de Esdras, com acréscimos de um pouco de Crônicas e de Neemias. Também relata um debate sobre “o que há de mais forte no mundo”.

2. 2Esdras, algumas vezes chamado 4Esdras, é um apocalipse pseudonímico, preservado em latim, mas não em grego, com dois capítulos cristãos acrescidos no princípio e outros dois no final. O capítulo 14 apresenta o número de livros do Antigo Testamento. No cânon católico romano, 1 e 2Esdras não foram incluídos.

3. Tobias é uma fábula moral com ambientação persa, e trata de esmolas, casamento e enterro.

4. Judite é uma trama interessante, num ambiente histórico confuso, a respeito de uma heroína piedosa e patriota.

5. Os Acréscimos a Ester são uma coletânea de passagens acrescidas à versão de Ester na Lxx, e destacam o caráter religioso deste livro.

6. Sabedoria é uma obra inspirada em Provérbios e atribuída a Salomão.

7. Eclesiástico, também chamado Sirácida, é uma obra semelhante a Sabedoria e de autor indicado pelo nome (Jesua ben Siraque, ou Jesus, o filho de Eclesiástico). Foi escrito por volta de 180 a. C., e seu catálogo de homens famosos dá testemunho importante sobre o conteúdo do cânon do Antigo Testamento naquela data. O prólogo do tradutor, escrito meio século mais tarde, faz repetidas referências às três seções da Bíblia hebraica.

8. Baruque foi atribuído ao companheiro de Jeremias e imita um pouco seu estilo.

9. A Epístola de Jeremias tem ligação com Baruque, e algumas vezes os dois escritos são contados como um único livro (como na King James version [Versão do rei Tiago], que assim alista catorze livros, e não quinze).

Os acréscimos a Daniel consistem em três segmentos (10, 11 e 12 nesta lista).

10-11. Susana e Bel e o dragão são histórias que narram como o sábio Daniel expôs juízes injustos e sacerdotes pagãos e embusteiros.

12. O Cântico dos três jovens contém uma oração e um hino atribuídos aos três companheiros de Daniel quando se encontram na fornalha; o hino é usado no culto cristão e conhecido como Benedicite (nos serviços religiosos da Igreja da Inglaterra).

Como foi dito antes, algumas autoridades contam esses três livros (10,11 e 12) como um só, ou seja, Os acréscimos de Daniel, e também contam Baruque como um livro que contém a Epístola de Jeremias; assim, sua contagem alista apenas doze livros apócrifos.

13. A Oração de Manassés põe em palavras a oração de Manassés por perdão encontrada em 2Crônicas 33.12,13. Esse livro não se encontra no cânon católico romano.

14-15. 1 e 2Macabeus relatam a revolta bem-sucedida dos macabeus em meados do segundo século a. C. Contra Antíoco Epifânio, o perseguidor sírio de cultura helenista. O primeiro livro e partes do segundo são as fontes históricas primárias para o conhecimento a respeito da fé heroica dos macabeus, ainda que o segundo livro acrescente material lendário. Na Septuaginta, encontram-se também 3 e 4Macabeus, mas esses têm menor importância.

O desenvolvimento do pensamento religioso nos apócrifos

O desenvolvimento do pensamento religioso encontrado nos Apócrifos, que extrapola o ensino do Antigo Testamento, deve ser avaliado pelo ensino do Novo. Por exemplo, Sabedoria 4.7-5.16 ensina que todos enfrentam o juízo pessoal após a morte. Isso condiz com o posterior do Novo Testamento (Hb 9.27).

Outros ensinamentos acrescentam material doutrinário estranho ao ensino do Novo Testamento, como os seguintes:

1. Em Tobias 12.15, declara-se que sete anjos permanecem diante de Deus e apresentam as orações dos santos.

2. Em 2Macabeus15.13,14, afirma-se que um profeta falecido ora a favor do povo de Deus na terra.

3. Em Sabedoria 8.19,20 e em Eclesiástico 1.14, o leitor fica sabendo que os justos são as pessoas que receberam uma alma boa ao nascer.

4. Em Tobias 12.9 e em Eclesiástico 3.3, o leitor é informado de que suas boas obras expiam seus atos maus.

5. Em 2Macabeus 12.40-45, incentiva-se a oração pelo perdão dos pecados dos mortos.

As duas primeiras ideias não encontram nenhum apoio no Antigo Testamento nem no Novo, e a segunda pode ter dado algum apoio ao conceito católico romano da oração aos santos falecidos. Os últimos três princípios sem dúvida contrariam o ensino do Novo Testamento sobre a regeneração, a justificação e a vida presente como o período de provação.


Os Apócrifos, por conseguinte, devem ser lidos com cuidado. Embora muito do que está presente neles reflita o judaísmo praticado em data posterior ao Antigo Testamento e alguns trechos apresentam desenvolvimento na direção do Novo Testamento, há também algumas passagens enganosas que até encontram certo interesse histórico, mas, da perspectiva da teologia e da prática cristãs, devem ser evitadas.


Referência:

BECKWITH, Roger T., Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, ed. Vida Nova; cap. 10 (Os Apócrifos), p. 90-98.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Raciocínio Circular


Gary DeMar


A Bíblia alega ser a Palavra de Deus. Esse é o nosso ponto de partida. Com certeza, simplesmente porque um livro diz ser a Palavra de Deus não o torna tal coisa. Mas se um livro é a Palavra de Deus, ele certamente alegará ser a Palavra de Deus. Se um livro é a Palavra de Deus, então o que ele diz será verdade. Pode parecer estranho que citemos a Bíblia para provar que a Bíblia é a Palavra de Deus. Isso é o que os filósofos chamam de "argumento circular". Quando provamos a autoridade da Bíblia citando a Bíblia, assumimos desde o princípio que a Bíblia é autoritativa. Isso é apenas um círculo vicioso de raciocínio, que não nos levará a nenhum lugar? Pode parecer que precisamos provar a verdade da Bíblia por algum outro padrão "neutro" externo. Certamente, se fizermos isso, teríamos que responder o que torna esse padrão autoritativo. Apenas criaríamos outro círculo que necessitaria ser defendido.

Há problemas com alguns tipos de argumentos circulares. Mas você pode ficar surpreso ao descobrir que não pode parar de argumentar em círculo. Em algum ponto, todo mundo tem que argumentar em círculo. Por que? Porque todo mundo, como temos visto os outros capítulos, tem certas suposições. Ninguém é neutro. Quando alguém desafiar suas suposições ou crenças padrão, você terá que usar um argumento circular ou terá que mudar suas pressuposições, o que também levaria a um argumento circular.

[Um] racionalista [para quem a razão tem autoridade final] pode provar a primazia da razão somente usando um argumento racional. Um empirista [para quem a experiência tem autoridade final] pode provar a primazia da experiência sensorial somente por algum tipo de apelo à experiência sensorial. Um muçulmano pode provar a primazia do Alcorão somente apelando ao Alcorão. Mas se todos os sistemas são circulares dessa forma, então tal circularidade dificilmente pode ser usada contra o Cristianismo. O crítico será inevitavelmente tão "culpado" de circularidade quanto o cristão. [1]

Certamente, nem todos os argumentos circulares são racionais ou válidos. Uma pessoa afirmar que deveria ser adorada porque ela é deus, baseada em sua própria afirmação de que ela é deus, não é o tipo de argumento circular que está sendo examinado. "A circularidade num sistema é propriamente justificada somente em um ponto: num argumento para o critério último do sistema". [2]

Mas o que acontece quando dois argumentos circulares – cada um alegando autoridade última para sua cosmovisão – não concordam entre si? Cada cosmovisão deve ser "testada", extraindo-se as implicações lógicas das pressuposições fixadas. Qual se ajusta melhor à realidade? Por exemplo, a Bíblia contém milhares de profecias sobre numerosos eventos abrangendo milhares de anos. A Bíblia apresenta o padrão para determinar como avaliar as profecias: Elas sempre devem acontecer; não pode haver enganos (Dt. 18:18-22). A Bíblia pode ser facilmente testada por seus próprios padrões.

Notas:

[1] John M. Frame, Doctrine of the Knowledge of God: A Theology of Lordship (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1987), 130.

[2] Frame, Doctrine of the Knowledge of God, 130.


Referência:

Thinking Straight in a Crooked World, Gary DeMar, American Vision, p. 100-101. Traduzido por Felipe Sabino de Araújo Neto (
http://www.monergismo.com/textos/apologetica/raciocinio-circular_demar.pdf ; acessado dia 05/01/2014 ás 16:30).