quarta-feira, 28 de maio de 2014

O Molinismo e a Onisciência de Deus

 
Paul Helm

Conhecimento Médio

Uma sutil e ambiciosa forma de tentar conciliar a posição “isenta de risco” da providência com a ideia de uma ação humana não-determinista foi feita pelo teólogo jesuíta Luís de Molina (1535-1600). Sua opinião foi recentemente revivida por Alvin Plantinga e tem recebido nova e intensa atenção. [1] A idéia do conhecimento médio pode ser brevemente explicada da seguinte forma.

Como nós podemos entender a ideia da onisciência de Deus, a ideia de que Deus conhece toda a verdade? Uma forma útil é prestar atenção aos tipos de verdade que existem para Deus conhecer. Há, primeiramente, verdades necessárias. Por exemplo, as leis da lógica e da aritmética são verdades necessárias. Tais verdades não podem ser falsas. Tais verdades não dependem de Deus querer que elas sejam verdades; ele as conhece como verdadeiras porque ele é onisciente.

Então há uma miríade de verdades que são verdadeiras porque Deus quer que seja assim. Por exemplo, Londres é a capital da Inglaterra, e a batalha de Hastings foi travada em 1066. Essas, e todas as verdades semelhantes, são verdadeiras em virtude do fato de que Deus quis que elas fossem verdadeiras. Se Deus não as tivesse livremente desejado, então elas não seriam verdadeiras. Por essa razão, seu conhecimento sobre elas é chamado de conhecimento livre. Elas aconteceram como resultado da livre decisão de Deus. Deus não conhece essas verdades em um tempo depois de desejá-las, mas ele as conhece ao desejá-las, e não da forma como nós conhecemos muitas de nossas ações ao fazê-las.

Além desses dois tipos de conhecimento, há também o conhecimento que Deus tem das possibilidades que ele não deseja, mas que existem como possibilidades abstratas. Por exemplo, Bognor Regis é a capital da Inglaterra, e a batalha de Hastings foi travada em 1660. Entre essas possibilidades abstratas, há proposições condicionais. Por exemplo, se Bognor Regis fosse a capital da Inglaterra, Londres teria menos de um milhão de habitantes. Outro exemplo: se João tivesse se casado com Joana, eles teriam tido três filhos. O conhecimento que Deus tem de tais possibilidades tem sido chamado de conhecimento médio, um conhecimento a meio caminho entre o conhecimento que Deus tem de verdades necessárias e o seu conhecimento livre.

A Bíblia dá exemplos do conhecimento que Deus tem de tais possibilidades. Duas passagens bíblicas são particularmente famosas nessa discussão: 1Samuel 23.7-13 e Mateus 11.20-24. O que a primeira passagem deixa claro é que Deus sabia que se Davi continuasse na cidade de Queila, Saul o alcançaria, e que se Saul chegasse a Queila os homens da cidade lhe entregariam Davi. O que Jesus afirma na passagem de Mateus é que, se suas poderosas obras tivessem sido realizadas nas impenitentes cidades de Tiro e Sidom, elas teriam se arrependido.

A partir desses dados não pode haver dúvida do fato de que Deus possui o conhecimento de possibilidades que nunca aconteceram. Deus sabia o que teria acontecido se Davi tivesse permanecido em Queila, mas Davi não permaneceu em Queila. Cristo sabia o que teria acontecido a Tiro e Sidom se suas poderosas obras tivessem sido realizadas ali, mas suas obras não foram realizadas ali.

Deus, então, em sua onisciência, conhece proposições que podem não ser falsas, e proposições que podem ser falsas, mas são verdadeiras. Ele também conhece proposições que podem ser verdade, mas que de fato não são verdade, como as que se referem a Davi e Queila e as que se referem a Tiro, Sidom e as obras poderosas de Cristo. É a partir desse vasto leque de possibilidades que Deus deseja o mundo real, o mundo em que eu e você habitamos.

Deve ser afirmado que tudo isso é terreno comum tanto a Molina quanto a seus oponentes. Todos os lados aceitam a ideia do “conhecimento médio de Deus” [conhecimento de possibilidades abstratas]. O que é distintivo na visão de Molina é que ele afirma que entre as proposições condicionais que Deus conhece estão aquelas que indicam o que aconteceria se um indivíduo realizasse uma ação livre (i.e., não-determinista). Ele conhece, por exemplo, miríades de proposições do tipo:

(A) Na circunstância C, se Aline livremente escolhe entre X e Y, ela escolherá Y.

E, Molina afirma, é porque Deus conhece todos os resultados de todas as escolhas possíveis que as pessoas fazem, que ele é capaz de criar – realizar – exatamente aquelas possibilidades que são necessárias a ele para alcançar seus propósitos, e que envolvem escolhas livres e não-determinadas. Portanto, as livres escolhas das criaturas são compatíveis com o perfeito pré-conhecimento de Deus e com sua providência isenta de riscos. Como William Lane Craig, um defensor do conhecimento médio, tem dito:

Já que Deus sabe o que qualquer criatura livre faria em qualquer situação, ele pode, ao criar a situação adequada, fazer com que essas criaturas realizem seus propósitos de forma que elas ajam livremente. [2]

Vamos ver como isso acontece em detalhes tomando um exemplo trivial, mas concreto. Suponhamos que, entre as proposições que Deus conhece, estejam as seguintes proposições condicionais:

(A) Somente se Aline estiver sob a circunstância C e for livre para escolher entre A e B, ela escolherá A.

(B) Somente se Aline estiver sob a circunstância C* e for livre para escolher entre A e B, ela escolherá B.

Suponhamos que Deus queira que Aline escolha B. Nesse caso, Deus claramente produzirá a circunstância C*.

Há uma grande dificuldade, porém, com essa suposição. É que estamos supondo que Aline seja indeterminadamente livre. Como ela é indeterminadamente livre, ela tem o poder, em um determinado conjunto de circunstâncias, de escolher qualquer uma de um número de alternativas abertas diante de si. Como dizem os defensores do conhecimento médio, qual alternativa Aline escolherá depende somente dela, e não de Deus.

Se é assim, então Deus não pode saber que (A) ou (B) é verdade. E como ele não pode saber que (A) é verdade, então ele não pode realizar (A) como um todo. Ele pode realizar Aline, e ele pode realizar a circunstância C. O que ele não pode realizar é Aline livremente escolhendo (A) na circunstância C, pois se Aline vai escolher ou não fazer (A) quando surgir a circunstância C é algo que cabe somente à própria Aline.

Os proponentes do conhecimento médio apresentam o seguinte quadro sedutor da relação de Deus com várias possibilidades condicionais. É como se Deus tivesse diante de si inumeráveis arquivos. Cada um desses arquivos é consistente e completo. Cada um representa um possível segmento do universo. Deus vistoria todos os arquivos e seleciona aqueles que, junto, formam esse universo que, em sua sabedoria e bondade, ele deseja trazer à existência. Entre os arquivos estão aqueles que contêm referência às livres ações humanas em certas circunstâncias. Deus realiza esses arquivos que se referem a circunstâncias que, se os indivíduos forem a elas submetidos e agirem livremente, escolherão de acordo com o fim que Deus quer realizar. Assim, eles dizem, a liberdade humana é preservada, e uma providência isente de riscos também é preservada.

A força do ponto de vista do conhecimento médio é que ele apresenta o universo, e inumeráveis outros universos possíveis, como já possuindo seu curso, embora em forma condicional. Do resumo total de todas essas condições, Deus seleciona (ele realiza) algumas delas para realizar o universo. O universo não pode, por causa da força da liberdade endossada por Molina, ter uma forma sombria, uma forma de tipo puramente condicional, que é a imagem em espelho de como o universo será quando for real, pois como ele será quando ele for real depende, pelo menos em parte, das livres ações de agentes que são reais, uma vez que Deus decidiu criar o universo.

Nós não devemos nos deixar seduzir por esse quadro. Deus não poderia conduzir o curso de eventos dessa forma, já que todos os indivíduos do universo real possuem liberdade não-determinada. As circunstâncias nunca asseguram a realização de uma determinada livre-escolha. Elas apenas providenciam as condições para a livre escolha de uma das várias possibilidades. Portanto, Deus não poderia “fracamente realizar” [3] certos resultados. Ele não poderia usar seu conhecimento sobre o que uma criatura faria sob certas circunstâncias para alcançar o fim desejado.

William Lane Craig, em uma exposição particularmente clara dessa posição, distingue três “momentos” lógicos na realização do mundo. O segundo desses momentos corresponde ao conhecimento médio de Deus. Craig afirma:

No segundo momento, que corresponde ao conhecimento médio de Deus, estão aqueles aspectos do mundo real que são conjuntos de assuntos referentes ao que as criaturas livres farão em qualquer conjunto de circunstâncias. Por exemplo, nesse segundo momento o conjunto de assuntos “se Marcos estivesse sob a circunstância C, então ele livremente realizaria a ação X”, é real. É claro que nem Marcos nem as circunstâncias existem ainda, exceto como ideias na mente de Deus. Contudo, se Marcos for realizado por Deus e colocado sob a circunstância C, então ele livremente realizará a ação X. Dessa forma. O conjunto de assuntos que são expressos pela verdade contrafatual referente às decisões livres tomadas pelos seres humanos já é real nesse segundo momento. Muito embora nesse momento o mundo real em toda a sua plenitude ainda não exista, certos aspectos dele já existem, a saber, os conjuntos de assuntos logicamente necessários que correspondem às verdades contrafatuais referentes à liberdade das criaturas. [4].

Dessa forma, Craig afirma que, antes de Deus decidir criar o mundo, todas as características do mundo que ele estava prestes a criar, incluindo todos os resultados das livres decisões de suas criaturas, já estavam presentes em sua mente. Tudo o que Deus teve que fazer ao criar o mundo foi fazer com que essas realidades específicas (que existiam em sua mente) existissem de fato. Mas é exatamente esse quadro da relação de Deus com as possibilidades que deve ser resistido porque, devido à liberdade humana não-determinada, ele não pode ser verdade. Como William Hasker argumenta, ao criticar esse ponto de vista: “como um agente é genuinamente livre, não há verdades contrafatuais que o agente definidamente faria sob várias circunstâncias possíveis” [5].

A fonte dessa confusão pode estar na falha entre distinguir possibilidades abstratas e realidades concretas. Há, na mente de Deus, conjuntos de possibilidades abstratas como, por exemplo, a ideia de uma certa pessoa possível. Ao criar uma pessoa real, contudo, Deus cria todas as forças físicas e psicológicas dessa pessoa, e  muito mais do que isso. A criação não é como a abertura da porta da jaula de um leão, é a chamada do leão à existência [6].

Nós também podemos ser induzidos ao erro por uma analogia extraída da conclusão oposta. Nós frequentemente dizemos que conhecemos nossos amigos de forma que nós definitivamente sabemos o que eles escolheriam em um dado conjunto de circunstâncias. Se nós sabemos, seguramente Deus pode saber? Mas isso é esquecer não somente que o conhecimento de Deus é infalível, mas também que nossos amigos são genuinamente livres, o que significa que, em qualquer conjunto de circunstâncias, eles são livres para escolher o curso oposto daquele que, com base na experiência passada, eles de fato escolheriam.

Há então possibilidades – sobre o resultado de escolhas livres não-determinadas – que Deus não conhece completamente. Portanto, ele não pode prever todas as possibilidades com respeito à livre escolha de uma pessoa. E assim, como seu conhecimento médio de tais escolhas livres é necessariamente incompleto, ele não pode exercer um controle providencial isento de “risco” sobre sua criação através de seu conhecimento médio.

Nós começamos essa discussão fazendo referência à onisciência de Deus. Mas a onisciência de Deus é limitada por aquilo que é concebível. Se Aline é livre de forma indeterminada, então não é conhecível, nem a Deus, nem a nós nem a qualquer outro observador o que Aline fará quando, em um dado conjunto de circunstâncias, ela for confrontada com uma escolha.

Isso de alguma forma envolve um limite sobre a onisciência de Deus? Nós estamos dizendo que há verdades que Deus não pode conhecer? Diferentes respostas têm sido dadas a essa questão. Swinburne, como nós vimos, crê que Deus livremente nega a si mesmo o conhecimento daquilo que ele poderia conhecer. Outros argumentam que até Aline, como um agente livre, realmente toma decisões livres, e por isso não há nada para saber. E como não há nada para saber, não há nada para Deus saber. Dessa forma, em vez do conhecimento médio ser uma forma de conciliar a onisciência divina (e a pré-ordenação) com a liberdade humana, nós devemos concluir que a liberdade humana limita o escopo da onisciência divina.

Tais conjuntos de assuntos não impedem que Deus faça uma suposição bem fundamentada, uma posição habilidosa, sobre o que Aline provavelmente fará. Talvez, sob a circunstância C, muito provavelmente Aline faça A. Mas o conhecimento de tais probabilidades corrói a infalibilidade que é classicamente atribuída a Deus, e que os proponentes do conhecimento médio certamente desejam que ele continue possuindo.
[7]

Notas:

[1] Veja Alvin Plantinga, The Nature of Necessity (Oxford: Clarendon Press, 1974), ch. IX.

[2] William Lane Craig, The Only Wise God (Grand Rapids, Michigan: Baker, 1987), p.135.

[3] A. Plantinga, op. cit., p. 173.

[4] Willian Lane Craig, op. cit., p. 143

[5] William Hasker, God, Time and Knowledge, p. 52.

[6] Sobre isso, e muito mais críticas detalhadas do conhecimento médio molinista, veja Richard M. Gale On the Nature and Existence of God (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), ch. 4.

[7] Para discussão posterior, veja Luís de Molina, On Divine Foreknowledge  (Parte  IV da Concórdia), trad. Alfred J. Freddoso (Ithaca: Cornell University Press, 1988). O conhecimento médio também é defendido por Thomas P. Flint “Two Concepts of Providence”, in Divine and Human Action, org. T. V. Morris (Ithaca: Cornell University Press, 1988). Ele é criticado por William Hasker, God, Time and Knowledge, e por Robert Merrihew Adams, “Middle Knowledge and the Problem of Evil”. Há outras soluções propostas para o problema do conhecimento de Deus e a liberdade humana não-determinada, mas elas tendem a focalizar sobre o conhecimento de Deus como distinto de sua vontade, e assim são menos relevantes para a providência divina. Veja, por exemplo, Alvin Plantinga “On Ockham’s Way Out”, in The Problem of Evil, org. M. M. Adams and R. M. Adams (Oxford: Oxford University Press, 1990).

* Colocações minhas em parênteses.


Referência:

HELM, Paul, A Providência de Deus (Série Teologia Cristã), ed. Cultura Cristã, cap. 2, ps. 48-53.

Um comentário:

  1. Ou seja, o Molinismo é uma furada e um blasfêmia contra Deus e sua natureza.

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